No começo deste ano, a ex-estatal Vale do Rio Doce esteve no centro das atenções do noticiário, pois o ex-executivo do Bradesco Roger Agnelli foi removido do cargo de presidente da empresa após ocupá-lo por uma década. Diante da novidade, seguiu-se uma renhida briga de bastidores para que se chegasse ao sucessor, terminada com a escolha de Murilo Ferreira, funcionário da empresa de longa data, em tese menos afinado a Agnelli que seu concorrente ao cargo, Tito Martins.
Para tratar do assunto e tentar colocar um pouco de luz sobre a troca de direção, o Correio da Cidadania entrevistou Danilo Chammas, advogado popular e defensor de movimentos sociais e sindicatos atingidos pela Vale, unificados na campanha Justiça nos Trilhos, para quem ainda permanece um mistério a orientação de Ferreira na presidência e seus eventuais planos de condução da empresa. No entanto, alerta que seu apetite expansionista e devastador precisa ser refreado.
Chammas tampouco acredita numa grande mudança na relação da Vale com o Brasil. É certo que o governo pretende aumentar a contribuição da empresa na balança comercial do país, deixando de se dedicar quase que exclusivamente a produtos primários pouco elaborados, além de pagar royalties “ridículos”. Mas não há sinais de que aumentará sua participação na empresa, fraudulentamente privatizada, ao menos se mantiver a orientação do governo Lula.
No entanto, ele acredita que somente o marco regulatório da mineração, a ser discutido possivelmente neste semestre, poderá colocar ordem no setor, desde que conte com maior participação da sociedade, não somente de governos e empresários. Só assim para que a maior mineradora do mundo deixe de ter “uma gestão totalmente voltada a engordar o bolso dos acionistas, pouco interessada em desenvolver o país e respeitar os direitos das comunidades impactadas”, marca dos anos Agnelli.
Correio da Cidadania: Como encara a mudança de direção na Vale do Rio Doce, com a saída de Roger Agnelli e a entrada de Murilo Ferreira?
Danilo Chammas: Nós já conhecemos o Murilo, que trabalhou muito tempo na companhia e saiu, dizem, por conflito com o Agnelli. Ao menos significa uma mudança de ares, que pode ser positiva.
Não temos tanto conhecimento dele, não podemos criar muitas expectativas, mas existe esperança. A política que vinha sendo aplicada até agora é uma política de expansão voraz, sem atenção às comunidades, ao meio ambiente, embora a empresa tente passar tal imagem.
No entanto, temos dados concretos em contrário, que comprovam esse comportamento depredador. Essa expansão voraz conduzida pelo Agnelli precisa ser moderada. Mas não sabemos em que direção caminhará a nova gestão, ainda é um mistério.
Correio da Cidadania: Mas você acredita numa mudança de orientação do perfil investidor da empresa? Quando se cogitou, em 2009, a substituição de Agnelli por Eike Baptista, nosso entrevistado, Raymundo Gomes Neto, afirmou que do ponto de vista do interesse público nada mudava, apenas as conexões políticas se alteravam em torno da empresa. A entrada de Murilo Ferreira representa a mesma coisa?
Danilo Chammas: Olha, é difícil afirmar isso. Eu cheguei a ver uma entrevista com o presidente do sindicato canadense em que ele afirma que a saída do Murilo Ferreira e entrada do Tito Martins na direção da Inco foi prejudicial, mudando um pouco a maneira de negociar com os trabalhadores. Isso mostra que, ao menos pelo que dizem os canadenses, o Tito tinha um perfil mais parecido com o do Agnelli, enquanto o Murilo teria outro estilo. Não sei se no final das contas ambos não chegam ao mesmo lugar, mas vi a declaração do dirigente do sindicato do USW (sindicato dos trabalhadores canadenses da Inco) falando dessa diferença.
Correio da Cidadania: E de forma geral, como avalia a gestão de Agnelli?
Danilo Chammas: É o que dissemos. Uma gestão totalmente voltada a engordar o bolso dos acionistas, pouco interessada em desenvolver o país, respeitar minimamente os direitos das comunidades impactadas pelos empreendimentos da Vale e o total alinhamento, nas macropolíticas, com a política levada a cabo pelo governo.
O governo Lula é promotor da expansão da Vale pelo mundo, em muitas ocasiões o presidente compareceu pessoalmente a outros países para abrir o caminho a essa empresa, ou seja, estendeu o prestígio internacional seu e do país para favorecer tais negócios. Não só da Vale, é verdade, mas ela foi muito beneficiada.
Por isso que, de certa maneira, fico desconfiado com todo esse escândalo que a mídia e o mercado fazem em relação a uma suposta ingerência do governo brasileiro. Se existe algum conflito, não é, digamos, no fundamento. É outro motivo… Enfim, há um exagero nessa gritaria.
Correio da Cidadania: Diante do que já foi exposto, torna-se imperiosa uma mudança de perfil na relação que a Vale mantém com o país ao longo desses anos de privatização, no que concerne a seus funcionários e localidades afetadas por seus empreendimentos?
Danilo Chammas: Sem dúvida que a Vale, hoje em dia, está, não sei a melhor palavra, participando do Estado. Ela se infiltrou no Estado e o utiliza tanto para fazer vista grossa a empreendimentos que mereciam controle maior em relação a licenciamento, fiscalização, etc., quanto para que o Estado arque com suas obrigações, de compensações ambientais, de projetos de fundo social, públicos, a serem aplicados nos locais impactados. Ainda por cima, apresenta essas contrapartidas como se fossem projetos e investimentos realizados por ela própria.
É uma relação, não sei como chamar… umbilical, entre a Vale e o governo, muito prejudicial ao país.
Correio da Cidadania: Em outras palavras, uma relação muito promíscua, porque a mesma empresa tomada de assalto do patrimônio público se serve do Estado para o enorme ônus que gera.
Danilo Chammas: É. Porque hoje o bônus fica para a empresa e o ônus para Estado e povo brasileiros. É o lado perverso. Os investidores privados, acionistas, lucram. Já o povo brasileiro paga duas vezes: como contribuinte e como atingido pelos empreendimentos da Vale, especialmente as comunidades e os trabalhadores.
Correio da Cidadania: Diante do quadro tão cheio de mazelas causadas pela Vale, reportadas por diversos movimentos sociais, o que deveria ser modificado com maior urgência em sua gestão e no direcionamento de seus investimentos?
Danilo Chammas: Ela como empresa deveria respeitar as leis e o Estado deveria obrigá-la a respeitar leis ambientais e trabalhistas. Deveria também impor mecanismos de maior distribuição do lucro e investimento nas áreas em que a Vale atua no país. Ela poderia também retomar o fundo de desenvolvimento que era obrigada a operar quando estatal; havia uma alíquota de 8% sobre o lucro que deveria ser destinada às áreas impactadas, mecanismo inexistente hoje. Precisa democratizar a participação da sociedade e da comunidade nas decisões da empresa.
Tudo seria possível se houvesse alguma vontade. Mas enquanto estatal, é claro, pois precisamos lembrar que seu processo de privatização foi completamente fraudulento. A Vale precisa, por vários motivos, voltar a ser uma empresa pública. Pelo país, pelo povo e pela maneira como foi feita a privatização.
Correio da Cidadania: Você acredita que o governo Dilma possa paulatinamente retomar o poder do Estado, e também sua arrecadação, em cima da empresa? Será que existe essa intenção no seio do governo, vide a estrondosa magnitude dessa ex-empresa pública?
Danilo Chammas: Eu não sei responder. Isso pra mim é especulação, estou muito longe de Brasília, Rio de Janeiro e seus bastidores, portanto, não sei dizer o que se pretende. Mas não veria razão. O governo Dilma, todos sabemos, ao menos em teoria é continuidade absoluta do governo passado, que nunca manifestou tal intenção.
Correio da Cidadania: Dilma que, aliás, deve estar abrindo muitas portas para a Vale na China em sua viagem do momento…
Danilo Chammas: Ah, sim! Pois é, desenvolvendo os negócios da Vale por lá também. Depois, veremos em primeira página na imprensa a Vale se vangloriando de seus negócios na China, a grande compradora do seu minério de ferro. Muito provavelmente estes assuntos estão sendo tratados lá.
Correio da Cidadania: O que devemos esperar da discussão do marco regulatório da mineração, que se pretende levar a cabo ainda neste semestre? Que papel esse novo marco precisa desempenhar sobre o setor?
Danilo Chammas: Bom, isto remete a algumas coisas que falamos na entrevista, sobre o retorno da empresa às mãos do país. Esperamos que esse marco se atualize em relação ao de outros países, e mesmo a outros marcos nacionais. Que ao menos imponha royalties mais altos como em outros países, pois os de hoje são ridículos. Que possa também impor demarcação e distância de territórios indígenas da mineração, além do respeito aos territórios e populações tradicionais, como os quilombolas. Que faça respeitar o direito à consulta prévia e informada que essas comunidades têm e aumente os royalties aos municípios mineradores e à área de influência do empreendimento.
E também é necessária a democratização do debate, pois até o momento não vimos oportunidade para a sociedade participar de tais discussões. Sabemos que é uma iniciativa do governo, desde a gestão anterior, com muitos seminários e diálogos com empresas, prefeituras e governos estaduais, mas não temos visto a sociedade sendo chamada e informada, quando é muito necessário um debate público, não só pela Vale como também pelos muitos empreendimentos que pipocam Brasil afora. É necessário que ao menos as comunidades impactadas possam se manifestar a respeito.
* Publicado originalmente no site do Correio da Cidadania.