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Governo haitiano maquia a miséria

Em Porto Príncipe, mulher e menina carregam água em uma rua perto do bairro de Jalouise, onde parte das casas foi pintada. Foto: HGW/Marc Schindler Saint Val
Em Porto Príncipe, mulher e menina carregam água em uma rua perto do bairro de Jalouise, onde parte das casas foi pintada. Foto: HGW/Marc Schindler Saint Val

 

Porto Príncipe, Haiti, 1/10/2013 (Haiti Grassroots Watch) – Rosadas, verdes, azuis, vermelhas. À distância, as milhares de casas de cores brilhantes parecem uma pintura, e não se vê o sofrimento e os perigos que ameaçam os moradores do bairro de Jalousie, na capital do Haiti. O governo diz que está gastando US$ 6 milhões para melhorar a área.

No mês passado, um estudo alertou que este assentamento localizado em uma colina, onde vivem entre 45 mil e 50 mil pessoas, se encontra sobre uma falha geológica secundária. “Não existe apenas uma falha que atravessa Jalousie, também existe um sério perigo de deslizamento de lama na área”, explicou o geólogo Claude Prépetit, coautor de um novo estudo sismológico de Porto Príncipe, em uma entrevista coletiva em agosto.

Muitas das pequenas casas de Jalousie foram construídas do lado do monte de L’Hôpital, sobre terrenos muito empinados ou em barrancos que funcionam como canais para a água de chuva. Cada vez que chove, cataratas de água descem pelas ladeiras, nas quais oficialmente é ilegal construir ou cortar árvores. Sem vegetação que absorva a chuva, a água e o lodo podem arrastar pessoas, animais e até casas inteiras.

Um documento do Ministério do Meio Ambiente indica que mais de 1.300 moradias devem ser transferidas, por ameaçarem seus moradores e quem vivem mais abaixo. Em 2012, o ministro Ronald Toussaint anunciou planos para essas mudanças, mas, quando os moradores envolvidos protestaram, o presidente, Michel Martelly, interveio cancelando a iniciativa e destituindo o ministro.

Jalousie, um dos muitos bairros superpovoados e informais em volta da capital haitiana, não tem água nem saneamento. Segundo estudo da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o tamanho das casas varia de oito a 30 metros quadrados e a densidade populacional pode chegar a 1.800 pessoas por hectare.

As diminutas moradias de concreto ficam de frente para lojas, restaurantes, hotéis e mansões de Pétion-Ville, uma das comunidades onde vivem e trabalham profissionais e a elite do Haiti. Os habitantes de Jalousie, incluindo meninos e meninas, têm que subir todos os dias estreitas escadarias para conseguir água, que carregam em suas cabeças. Cada balde de 19 litros custa até US$ 0,35 e pesa cerca de 19 quilos.

O governo haitiano disse estar em processo de gastar cerca de US$ 6 milhões em Jalousie, mas não para reduzir seus perigos ou fornecer serviços. O que a administração está fazendo é, para alguns, “um trabalho de maquiagem”: pinta as casas dentro do projeto “Jalousie em cores”, como homenagem ao artista haitiano Préfète Duffaut (1923-2012), cujas obras apresentavam casas de cores brilhantes nas ladeiras de morros.

A primeira fase custou US$ 1,2 milhão e foi completada no começo deste ano, coincidindo com a inauguração do Hotel Ocidental Royal Oasis, de cinco estrelas, onde um quarto simples custa US$ 175 e uma suíte “júnior” mais de US$ 350. Duas noites em uma suíte equivalem a mais do que a maioria dos haitianos ganha em um ano.

O Oasis fica de frente para Jalousie. A primeira fase do projeto incluía pintar mil casas para tornar a vista um pouco mais agradável, e supostamente incluiu o “reforço” de algumas delas, embora nenhum dos 25 beneficiários entrevistados pela Haiti Grassroots Watch (HGW) tenha afirmado que sua casa recebeu algo mais do que pintura.

“A fase dois será ainda maior”, afirmou o primeiro-ministro, Laurent Lamothe a uma pequena multidão reunida em um campo de futebol na inauguração do hotel, dia 16 de agosto. Lamothe, explicou que custará US$ 5 milhões, para pintar mais três mil casas e que o campo de futebol terá novas tribunas, vestiários e grama sintética. Também prometeu uma rua asfaltada de 1,2 quilômetro e a melhoria de 2,8 quilômetros de vielas.

Imagem do recente estudo de microzoneamento sísmico mostra as zonas de risco de deslizamento
Imagem do recente estudo de microzoneamento sísmico mostra as zonas de risco de deslizamento

Enquanto Lamothe elogiava o projeto, cerca de 20 manifestantes portando cartazes gritavam: “Queremos água”, “Não temos água”, “Escolas”, “Precisamos de uma clínica médica”. O primeiro-ministro pediu para terem paciência e afirmou que “abordaremos todos os problemas aos poucos, mas vocês sabem que há muitas dificuldades e estamos tentando fazer muito com poucos meios”.

Outra demão de pintura não é a prioridade para os moradores de Jalousie, segundo uma rápida pesquisa feita pela HGW. Diante da consulta sobre o que é mais necessário, 24 entre 25 pessoas disseram que desejam escolas para os filhos, e um quarto delas acrescentou que querem melhor acesso à água. Pelo menos uma moradora – que como a maioria dos entrevistados pela HGW preferiu não se identificar – já não tem paciência. “Precisamos é de água e eletricidade” disse essa mulher que vive em uma pequena casa com outras 11 pessoas, entre elas duas crianças que não estudam.

Nenhum dos entrevistados que tiveram suas casas pintadas foi consultado, nem mesmo sobre a escolha das cores. Lavando roupa à mão em uma pequena varanda, uma mulher disse que não estava em casa quando ela foi pintada, e afirmou não estar satisfeita. “Posso eu mesma pintar minha casa. Quando cheguei, vi um monte de manchas dos respingos da pintura na parede”, contou.

Vistas de longe, as cores são atraentes. Contudo, as casas que não ficam de frente para o hotel continuam sendo de cinzentos blocos de concreto, e mesmo as beneficiadas só receberam uma pintura parcial das paredes externas. Sylvestre Telfort, morador de Jalousie, afirma, como muitos, que o projeto busca cobrir este assentamento com uma espécie de “maquiagem” porque fica em frente ao Oasis e a outro hotel novo, o Best Western Premier.

Em seu site, o Oasis promete aos seus hóspedes “uma vista magnífica da cidade”. O Best Western, onde os quartos custam US$ 150 por noite, diz aos seus futuros hóspedes que o hotel está “localizado nas belas colinas de Pétion-Ville, um conhecido e moderno subúrbio de Porto Príncipe”.

“O projeto de pintar Jalousie não é nada mais do que uma ação do governo para satisfazer a burguesia, que durante anos tentou nos exterminar”, afirmou Telfort. “Não podem jogar uma bomba para eliminar as pessoas. Por isso tiveram que adotar outro enfoque e coloriram o exterior de nossas casas”, opinou. O ex-ministro do Meio Ambiente está preocupado. “A situação do morro L’Hôpital é caótica. É uma questão de segurança pública. As construções de concreto impedem que o solo absorva a água da chuva. Pintar não é a resposta”, afirmou Toussaint à HGW.

Prépetit, coordenador do estudo sismológico, assegurou que muitos moradores estão em perigo, “pelo risco de deslizamento de lama e de movimentos telúricos, bem como pela amplificação das vibrações durante um terremoto”. Para Prépetit, o governo deveria proibir “todas as construções futuras na região”, além de “identificar as áreas mais perigosas e transferir todas as pessoas cujas vidas estejam em risco”. Por fim, após garantir que a população tenha serviços, “podem pintar as fachadas das casas cujos donos permitirem, se querem embelezá-las”, acrescentou.

Durante sua visita ao assentamento, apenas 14 dias depois que Prépetit e outros especialistas anunciaram a falha secundária, Lamothe não mencionou os riscos sísmicos. “Logo verão o que podemos fazer para melhorar as vidas das pessoas. Ficarão orgulhosos. Ficarão satisfeitos”, afirmou.

Depois de discursar, Lamothe e sua comitiva entraram em um veículo todo terreno, no qual desceram o morro. Os moradores regressaram para suas subidas e descidas diárias em busca de água, tentando sobreviver mais um dia no assentamento que o Best Western chama de “moderno subúrbio”. Envolverde/IPS

* A Haiti Grassroots Watch é uma associação entre AlterPresse, Sociedade de Animação e Comunicação Social (Saks), Rede de Mulheres de Rádios Comunitárias (Refraka), rádios comunitárias da Associação de Meios de Comunicação Comunitários Haitianos, e estudantes do Laboratório de Jornalismo da Universidade do Estado do Haiti.