Diversos

A crise da esquerda e a decadência de Europa e Estados Unidos

10/05/2015- Londres- Inglaterra- Na sequência dos resultados das eleições gerais de 2015, o primeiro-ministro David Cameron fez um discurso na porta de sua residência oficial, na Downing Street. Foto: Robert Thom/ The Prime Minister’s Office
10/05/2015- Londres- Inglaterra- Na sequência dos resultados das eleições gerais de 2015, o primeiro-ministro David Cameron fez um discurso na porta de sua residência oficial, na Downing Street. Foto: Robert Thom/ The Prime Minister’s Office

Por Roberto Savio*

Roma, Itália, junho/2015 – A derrota do Partido Trabalhista nas eleições britânicas do dia 7 de maio é outro sinal da crise que as forças de esquerda enfrentam, à margem da questão de como, sob o sistema eleitoral britânico, os trabalhistas, que na realidade aumentaram seu número de votos, reduziram seu número de cadeiras no novo Parlamento, 24 a menos do que as 256 da legislatura anterior.

Se o sistema britânico fosse proporcional e não uninominal, o Partido Conservador, com seus 11 milhões de votos, não teria obtido suas 331 cadeiras, mas 256, bem abaixo da maioria absoluta de 326 necessária para governar.

No outro extremo, o Partido pela Independência do Reino Unido (Ukip), que, com quase quatro milhões de votos, conseguiu apenas uma cadeira, teria conseguido 83.

Esses resultados, difíceis de imaginar em outro país, são um exemplo da insularidade britânica.

Essas eleições refletem certa semelhança com as eleições presidenciais dos Estados Unidos, quando o candidato democrata, Al Gore, superou em mais de meio milhão os votos populares do seu adversário republicano, George W. Bush, mas não obteve a maioria de votos do colégio eleitoral, a base do sistema norte-americano.

O resultado foi oito anos de governo de George w. Bush, a guerra no Iraque, a crise do multilateralismo e a parafernália do “destino excepcional dos Estados Unidos”.

A análise política que exponho a seguir seguramente provocará reações adversas por parte dos especialistas políticos tradicionais.

Atualmente, aceita-se amplamente que o desmembramento da União Soviética deu luz verde a uma espécie de capitalismo sem controle, marcado por uma supremacia sem precedentes das finanças que, em termos de volume de investimentos, supera esmagadoramente a economia real ou produtiva.

A ofensiva do pensamento neoliberal surpreendeu a esquerda totalmente desprevenida, porque parte de sua função foi a de oferecer uma alternativa democrática ao comunismo, que repentinamente deixara de ser uma ameaça.

Nesse quadro, a reação da esquerda consistiu em imitar os vencedores, em lugar de tentar constituir uma alternativa ao processo de globalização neoliberal.

Desde o começo da crise financeira mundial, em 2008, com seu custo de resgate até agora superior a US$ 4 trilhões, a esquerda não ofereceu nenhuma resposta válida para ela.

Desde a revolução industrial, a identidade da esquerda se baseou na luta pela justiça social, igualdade de oportunidades e redistribuição da renda. A direita, por outro lado, ressaltava os esforços individuais, a redução do papel do Estado e o sucesso como motivação.

Seguindo essa extrema simplificação, é preciso acrescentar que a esquerda, de Karl Marx a John Keynes, estudou sempre a forma de promover o crescimento econômico e a redistribuição da renda, Marx abolindo a propriedade privada e os social-democratas mediante o sistema de impostos progressivos.

O que nunca se analisou foi a alternativa de um planejamento progressista em caso de uma crise econômica como a que enfrentamos agora: desemprego estrutural, jovens obrigados a aceitar qualquer tipo de contrato, novas tecnologias que estão fazendo desaparecer o conceito de classes e transformação dos sindicatos – outrora poderosos atores na luta pela justiça social – em irrelevantes.

É um fato sem precedentes que os 25 principais gestores de fundos especulativos receberam um prêmio de US$ 11,62 bilhões em 2014. Porém, nem o presidente norte-americano, Barack Obama, nem Ed Miliband, o líder trabalhista britânico que renunciou após a derrota eleitoral deste mês, pensaram que havia motivos para denunciar esse nível obsceno de cobiça.

Entretanto, o projeto político europeu está em total desordem, ao enfrentar um Grexit no sul e um Brexit no norte.

No caso de um Grexit (possível abandono da União Europeia pela Grécia), Atenas enfrenta a perspectiva de precisar fazer concessões substanciais à UE, o que significaria se afastar das promessas de Alexis Tsipras, eleito primeiro-ministro em janeiro com uma expressão de rebeldia contra anos de desmantelamento das estruturas públicas e sociais impostas em nome da austeridade.

O que está em jogo é o modelo neoliberal da Alemanha, apoiada por aliados como Áustria, Finlândia e Holanda, e que levantou um muro contra qualquer indulgência, junto com os  países que aceitaram cortes dolorosos e onde os conservadores estão no poder, como Espanha, Irlanda e Portugal. Todos eles consideram uma inaceitável fraqueza fazer concessões à esquerda.

Um Brexit (possível abandono da UE pela Grã-Bretanha) é um assunto diferente. É um jogo orquestrado pelo primeiro-ministro britânico, David Cameron, para negociar um acordo com Bruxelas mais favorável a Londres.

No final de 2017, haverá na Grã-Bretanha um referendo. Os quatro milhões de eleitores do Ukip e os chamados “eurocéticos” ameaçam empurrar a Grã-Bretanha para fora da União Europeia, especialmente se Cameron não conseguir obter algumas concessões substancias de Bruxelas.

Por outro lado, enquanto a Europa se encontra em estado de confusão, os Estados Unidos têm um grave problema de governabilidade. O analista Moisés Naím identifica alguns exemplos de como isso se traduziu em danos por sua própria mão.

Um deles se refere à China, que criou um fundo alternativo, o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII), após cansar de esperar durante cinco anos que o Congresso norte-americano, dominado pelos republicanos, autorizasse o aumento de sua participação no Fundo Monetário Internacional, dos ridículos 3,8% atuais para 6%. A cota dos Estados Unidos é de 16,5%.

Washington tentou bloquear o BAII pressionando seus aliados, sem sucesso. Primeiro a Grã-Bretanha e depois Itália, Alemanha e França anunciaram sua participação no banco, que agora conta com 50 membros e os Estados Unidos não estão entre eles.

Outro exemplo foi a tentativa do Congresso de acabar com o Banco de Exportações e Importações dos Estados Unidos (Exim Bank), que desde sua fundação pelo presidente Franklin D. Roosevelt, em 1934, desembolsou US$ 570 bilhões para apoiar os exportadores norte-americanos.

Somente nos dois últimos anos, a China apoiou seu setor exportador com US$ 670 bilhões. Moral da história: as empresas norte-americanas estarão em clara desvantagem.

Como assinalou o grande defensor da hegemonia norte-americana Larry Summers, “os Estados Unidos perderão sua capacidade de dar forma ao sistema econômico global”.

O último desdém ao papel de Washington como líder mundial partiu de quatro chefes de Estado árabes, que desprezaram uma cúpula com Obama em Camp David no dia 14 de maio, convocada pelo mandatário norte-americano para tranquilizar os Estados do Golfo sobre as negociações para um acordo nuclear com o Irã.

Obama garantiu que um acordo com Teerã não afetará a aliança de Washington com esses países. Entretanto, os governantes de Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Omã e Bahrein não foram à reunião.

Porém, não há exemplo mais ilustrativo de uma decisão errada do que o esforço conjunto de Estados Unidos e União Europeia para colocar entre a parede e a espada o presidente russo, Vladimir Putin, por sua intervenção na Ucrânia, impondo duras sanções a Moscou.

Tudo indica que não houve reflexão sobre a sensatez de cercar um líder paranoico e autoritário, mas que conta com forte apoio popular e que progressivamente pode ir arrastando também outros países da Europa Central e Oriental.

O resultado desse cerco é que a China acudiu em ajuda da asfixiada economia russa mediante uma potente injeção de dinheiro.

Pequim investirá cerca de US$ 6 bilhões na construção de uma ferrovia de alta velocidade entre Moscou e Kazany, financiar um gasoduto de 2.700 quilômetros para fornecer 30 bilhões de metros cúbicos de gás russo pelo período de 30 anos, além de outros projetos, incluindo a criação de um fundo comum de US$ 2 bilhões para investimentos e um empréstimo de US$ 860 milhões ao banco russo Sberbank.

O resultado evidente é que a Rússia foi empurrada para fora da Europa, para os braços da China, e Pequim e Moscou começam manobras navais e terrestres conjuntas. Este é o interesse da Europa?

No final, o declínio de Europa e Estados Unidos talvez se reduza a uma diminuição de visão política, com uma democracia que está sendo substituída pela plutocracia, enquanto o estadista de antes é substituído por líderes políticos de menor nível.

Tudo isso acontece em meio a um crescente descontentamento com a política, que agora se dedica basicamente a tomar decisões administrativas, facilitando a corrupção.

Pelo menos é isso que parece pensar cerca de um terço dos eleitores europeus quando perguntados se acreditam que podem conseguir alguma mudança por meio do voto. E isso também explica o motivo de um crescente número de pessoas abandonar as urnas. Envolverde/IPS

* Roberto Savio é fundador da agência de notícias IPS e editor da newsletter Other News.