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Mudança climática diante de táticas sujas para energia também suja

Inundação na estrada A361, a principal que une Taunton e Glastonbury, na Inglaterra. Os cientistas alertam que a mudança climática está em marcha, causando caros e trágicos eventos meteorológicos extremos. Foto: Mark Robinson/cc by 2.0
Inundação na estrada A361, a principal que une Taunton e Glastonbury, na Inglaterra. Os cientistas alertam que a mudança climática está em marcha, causando caros e trágicos eventos meteorológicos extremos. Foto: Mark Robinson/cc by 2.0

 

Uxbridge, Canadá, 5/11/2014 – “As emissões de gases-estufa derivadas da atividade humana são as mais altas já registradas, e estamos vendo cada vez mais eventos meteorológicos e climáticos extremos. Não poderemos impedir um desastre em grande escala, se não considerarmos esta espécie de ciência dura”. Essa declaração sobre o quinto e novo informe do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre a Mudança Climática (IPCC) parece ter sido feita pela organização ambientalista Greenpeace ou pelo Departamento de Estado norte-americano?

Foi pronunciada por John Kerry, o secretário de Estado dos Estados Unidos. Importantes funcionários em muitos outros países fizeram comentários semelhantes sobre o Informe de Síntese do IPCC, divulgado no dia 2, em Copenhague. “Quanto mais estivermos perdendo tempo em um debate sobre ideologia e política, mais aumentarão os custos da falta de ação”, afirmou Kerry em um comunicado.

O Informe de Síntese repassa sete anos de pesquisas climáticas realizadas por milhares dos melhores cientistas do mundo, e conclui que a mudança climática está em marcha, causando caros e trágicos eventos meteorológicos e climáticos. Estes vão piorar mais do que se possa imaginar, a menos que a humanidade se livre dos combustíveis fósseis.

Na realidade, a mudança climática é fácil de entender e pode ser resumida em menos de 60 segundos. A saber: durante décadas a humanidade insuflou centenas de milhões de toneladas de dióxido de carbono na atmosfera a partir da queima de combustíveis fósseis como carvão, petróleo e gás natural.

Algumas medições mostram que atualmente há 42% mais de dióxido de carbono na atmosfera do que há cem anos. Determinou-se há muito tempo que esse gás-estufa atua como uma manta, mantendo o planeta quente ao prender parte do calor do Sol. A cada ano nossas emissões de dióxido de carbono deixam mais grossa essa manta, capturando mais calor.

Essa camada de dióxido de carbono gerada pela queima de combustíveis fósseis elevou em 0,85 grau as temperaturas mundiais. E seriam muito maiores se os oceanos não absorvessem 95% do calor extra preso nessa camada. Mas os oceanos não nos ajudarão por muito mais tempo. Este ano será o mais quente já registrado.

“É preciso uma ação mundial para reduzir as emissões globais de gases-estufa”, afirmou Michel Jarraud, secretário-geral da Organização Meteorológica Mundial. “Quanto mais esperarmos, mais caro e difícil será nos adaptarmos, a ponto de alguns impactos se tornarem irreversíveis e impossíveis de enfrentar”, advertiu em um comentário sobre o informe.

No documento não há nada fundamentalmente novo. Tudo o que realmente mudou é a urgência e o desespero na linguagem agora usada pelos cientistas do clima. Atualmente, todos sabem que é preciso eliminar os combustíveis fósseis e substituí-los por fontes de energia que não lancem mais dióxido de carbono na agonizante manta que tecemos. E já sabemos como fazer a transição para uma economia baixa em carbono, destacou Bob Watson, ex-presidente do IPCC.

Para reiterar os passos: aumentar substancialmente a eficiência energética e o uso de energias renováveis, fechar a maioria das usinas de carvão, colocar um preço no carbono, etc. Há dezenas de estudos sobre como fazer isso sem necessidade de novas tecnologias. Tudo pode ser alcançado com um ínfimo custo extra para a economia mundial, segundo a Comissão Global sobre a Economia e o Clima.

Esses estudos concluem que o que falta para uma virada rumo ao estilo de vida baixo em carbono é vontade ou coragem política. Sem mencionar o quanto é incrivelmente poderosa e influente a indústria dos combustíveis fósseis, seus banqueiros, investidores, advogados, assessores de relações públicas, sindicatos e outros, todos lutando desesperadamente para que a humanidade continue sendo viciada em seus produtos.

Isso significa se colocar contra alternativas baixas em carbono e qualificar de “radicais verdes” os avós que se preocupam com o futuro de seus netos. “Pensemos nisso como uma guerra sem fim”, declarou o assessor de relações públicas Richard Berman a executivos da indústria do petróleo e do gás, reunidos em junho no Estado norte-americano do Colorado.

É uma guerra suja contra as organizações ambientalistas e os que a apoiam. Os executivos da indústria devem estar dispostos a explorar emoções como medo, cobiça e indignação do público contra organizações e indivíduos que defendem o ambiente, apontou Berman, segundo um artigo do jornal The New York Times.

Berman, especialista em relações públicas da indústria do tabaco, fez essas declarações em um evento patrocinado pela Western Energy Alliance, que tem entre seus membros as firmas Devon Energy, Halliburton e Anadarko Petroleum. O discurso foi gravado em segredo por um executivo da indústria da energia ofendido com as táticas. Berman aconselhou importantes corporações energéticas que financiavam em segredo campanhas ambientais a não se preocuparem em ofender o público em geral, porque “pode-se ganhar feio ou perder bonito”, disse.

“Grandes Radicais Verdes” é a mais recente – e multimilionária – campanha de Berman e companhia. Tem por alvo organizações como Sierra Club e o Conselho de Defesa dos Recursos Naturais. Também ataca agressivamente entidades que se opõem à fratura hidráulica (questionada prática extrativista, também conhecida como fracking) e pressiona para impedir que haja controles mais rígidos sobre esse procedimento, que contamina tanto o ar quanto a água.

Berman também promete estrita confidencialidade a todos que financiarem seus esforços, dizendo: “Canalizamos tudo isto por intermédio de organizações sem fins lucrativos, que não precisam revelar os nomes de seus doadores”. E ele não está sozinho em seus esforços. A cada ano a indústria dos combustíveis fósseis gasta centenas de milhões de dólares em relações públicas, publicidade e lobby nos Estados Unidos, Canadá, Austrália e outros lugares.

“Os que escolhem ignorar ou questionar a ciência, tão claramente exposta nesse informe, o fazem com grande risco para nós, e para nossos filhos e netos”, ressaltou Kerry ao concluir suas declarações sobre o informe do IPCC. O fato de o secretário apelar para o senso de moralidade da indústria dos combustíveis fósseis, em lugar de endurecer as regulamentações sobre a emissão de dióxido de carbono, deixa claro o grande poder que exerce a indústria no sistema políticos dos Estados Unidos.

No dia 2, em Copenhague, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon, disse o que Kerry não pôde falar, e pediu urgência a grandes investidores, como os fundos de pensões e as empresas de seguro, no sentido de reduzirem seus investimentos nos combustíveis fósseis e destiná-los, por outro lado, às energias renováveis. É um começo, mas todos nós que acreditamos que nossos filhos e netos têm direito a um planeta em que se possa viver exigimos muito mais ação. Envolverde/IPS