São Paulo, Brasil, 2 de março de 2015 (Terramérica).- Em algum momento, seis milhões de pessoas poderão ficar sem água na metrópole paulista. As chuvas de fevereiro não afastaram o risco e podem agravá-lo ao adiar um racionamento pedido por especialistas em hidrologia há seis meses. A ameaça atormenta especialmente os milhões de imigrantes procedentes da pobre região nordestina do país, que em muitos casos fugiram das secas que ali se repetem a cada década ou pouco mais.
Ninguém podia imaginar que voltariam a enfrentar escassez de água nesta terra de abundância onde chegaram e a maioria prosperou. Um deles, Luiz Inácio Lula da Silva, conseguiu firmar-se como líder sindical e político e ser Presidente do país entre 2003 e 2011.
“Nosso tanque armazena 4.500 litros, que bastam para dois dias. Busco onde instalar outro para dispor de dez mil litros, negociando com vizinhos, já que meu teto pode não suportar o peso”, disse ao Terramérica o dono do restaurante Nação Nordestina, Luciano de Almeida, cujo estabelecimento atende oito mil clientes por mês.
Sua preocupação por armazenar mais água é comum aos 22 milhões de habitantes da região metropolitana de São Paulo, especialmente sua zona norte, que será a primeira afetada pelo racionamento, se finalmente o governo do Estado decidir adotá-lo, para garantir algum fornecimento hídrico durante todo o ano.
A zona norte é abastecida pelo Sistema Cantareira, um conjunto de seis represas que, à beira do colapso, ainda abastece seis milhões de pessoas. Eram cerca de nove milhões até meados do ano passado, mas um terço foi transferido a algum dos outros oito sistemas que fornecem água à região.
É precisamente na zona norte que se concentram muitos dos imigrantes nordestinos e seus descendentes, como reflete a grande quantidade de restaurantes que oferecem comidas típicas do nordeste, com sua carne seca, farinha de mandioca e seus feijões especiais.
Almeida, de 40 anos, nasceu em São Paulo. O imigrante foi seu pai, o primeiro de 14 irmãos a deixar o Estado de Pernambuco para buscar “uma vida melhor” na metrópole, em 1960, dois anos depois de uma das piores secas na região. Foi trabalhar em uma metalúrgica, onde “ganhou tanto dinheiro que um ano depois voltou à sua terra de férias”, e os irmãos começaram a seguir seu exemplo, contou Almeida, que descobriu sua vocação trabalhando oito anos no restaurante de um dos tios, antes de abrir o seu.
“A vida no Nordeste ficou mais tranquila. Com os benefícios sociais do governo, a população não sofre as carências de antes, mesmo durante a seca atual, uma das piores da história”, comprovou Almeida em suas frequentes viagens à terra de seus antepassados, de onde também é sua esposa, com quem tem uma filha de sete anos.
Além disso, a população rural, a mais afetada pelas secas, aprendeu a conviver com o clima semi-árido nordestino, recolhendo água de chuva em cisternas e outros depósitos, tanto para beber como para irrigar seus pequenos cultivos. É uma tecnologia social que o paulista Movimento Cisterna Já adaptou agora para enfrentar a crise hídrica em São Paulo
“Um dos meus 20 empregados decidiu voltar para o Nordeste, com suas economias pretende comprar um caminhão e vender água por lá”, contouAlmeida. É uma reversão migratória incentivada pelas melhores condições de vida na região, conhecida como a mais seca e pobre do Brasil.
Paulo Santos, de 38 anos e gerente do restaurante Feijão de Corda, também na zona norte, é outro que pretende voltar para sua cidade natal, Vitória da Conquista, na Bahia, que deixou há 20 anos para “testar um trabalho melhor do que a lavoura”. Contou que se cansou: “é muito estresse viver em São Paulo. A seca agrava a situação, mas também terá solução de um jeito ou de outro. Vitória da Conquista cresceu muito, agora tem de tudo, com melhor qualidade de vida”.
No entanto, a Aliança pela Água, que engloba 46 organizações sociais e ambientais do Estado, busca promover “a construção de segurança hídrica” na região metropolitana, pressionando o governo estadual e mobilizando a sociedade. As chuvas de fevereiro, superiores à média histórica do mês, recuperaram um pouco da capacidade do Cantareira, mas a situação continua “gravíssima”, disse ao Terramérica a coordenadora dessa entidade, Marussia Whately.
“Exige um esforço de guerra, especialmente para mitigar o sofrimento das periferias pobres, que não têm caixa d’água e não podem armazená-la para os dias ou horas sem abastecimento”, afirmou Delcio Rodrigues, ativista da Aliança e vice-presidente do Instituto Vitae Civilis, dedicado à mudança climática.
Rodrigues criticou o governo estadual e a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), que preferem “gerar confusão” ao informar que no dia 23 de fevereiro o Cantareira atingiu nível de 10,6%, o dobro do registrado no final de janeiro, mas omitindo que se trata do volume morto, de águas abaixo do ponto de captação. São águas que estão sendo usadas desde julho do ano passado, embora devessem funcionar como reserva.
Com o ponto de captação como referência, o indicador é negativo em 18,5%, bem longe do índice positivo de 12,3% de abril de 2014.
A crise hídrica se deve a dois anos de seca na região sudeste do país. Sem segurança de chuvas regulares este ano, é preciso uma recuperação excepcional das represas até março, para atravessar os seis meses seguintes de estiagem. É pouco provável que isso ocorra, e por esta razão especialistas em hidrologia propõem um racionamento imediato para evitar o colapso.
A Sabesp impõe um racionamento não declarado, reduzindo a pressão da água nas tubulações, o que interrompe o fornecimento em muitas regiões durante algumas horas. Além disso, adotou multas para quem aumentar o consumo e descontos para quem reduzir.
Mas a Aliança pede outras medidas de emergência, como campanhas públicas, gestão de crise com transparência e pesadas multas contra o desperdício. E acrescenta dez ações de médio prazo, como uma gestão mais participativa, redução de perdas, reflorestamento dos mananciais e tratamento do esgoto.
Em sua tentativa de evitar um racionamento, considerado daninho politicamente, o governo estadual decidiu usar águas da represa Billings para complementar outros sistemas. “É aterrorizante”, segundo Rodrigues, porque são águas muito contaminadas, inclusive por mercúrio, com um grave risco sanitário.
Por outro lado, o reflorestamento ao redor dos mananciais ganhou força com essa crise. É necessário para o Sistema Cantareira, onde sobrevive apenas 20% da vegetação original, destacou Whately. As florestas melhoram a produção e retenção da água e evitam erosão, mas é uma solução de longo prazo, não resolve a emergência atual, ressaltou. Envolverde/Terramérica
* Os autores são correspondentes da IPS.
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Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.