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Terramérica - Um tango a ser dançado por mais de duas pessoas

Parte da área industrial do Riachuelo e ao fundo o porto, em Buenos Aires. Em 1801, foram instalados os saladeros (lugar para salgar carnes) em sua margem e se começou a jogar lixo no rio, como fizeram depois curtumes, matadouros e muitas outras fábricas. Agora há 15 mil indústrias, das quais 459 se reconverteram para não contaminar e outras 1.300 estão nesse processo. Foto: Fabiana Fayssinet/IPS
Parte da área industrial do Riachuelo e ao fundo o porto, em Buenos Aires. Em 1801, foram instalados os saladeros (lugar para salgar carnes) em sua margem e se começou a jogar lixo no rio, como fizeram depois curtumes, matadouros e muitas outras fábricas. Agora há 15 mil indústrias, das quais 459 se reconverteram para não contaminar e outras 1.300 estão nesse processo. Foto: Fabiana Fayssinet/IPS

Buenos Aires, Argentina, 11 de agosto de 2014 (Terramérica).- Imortalizada por um famoso tango, a Niebla del Riachuelo (Névoa do Riachuelo) começa a se dissipar na bacia hidrográfica argentina mais industrial e contaminada. Porém, séculos de abandono e a complexa articulação de interesses públicos e privados dificultam um saneamento que exige mais do que um casal para dançar no ritmo.

O rio, que percorre 64 quilômetros, desde o distrito de La Matanza, na oriental província de Buenos Aires, até o turístico bairro La Boca, na capital, foi ilustrado em 1937 pelo tango de Enrique Cadícamo e Juan Carlos Cobián, como “turvo ancoradouro onde vão aportar embarcações que no cais para sempre haverão de ficar”. Mas, longe das licenças poéticas de um tango com inumeráveis versões, foi na realidade durante dois séculos um receptor de esgoto doméstico e industrial, com um mau cheiro terrível.

Agora, graças ao Plano Integral de Saneamento Ambiental aprovado em 2011, a situação mudou na bacia chamada Matanza em suas origens e Riachuelo na desembocadura no rio da Prata. “A névoa não existe mais, porque era um fator que tinha a ver com a contaminação da água, por isso o pobre Cadícamo não poderia voltar a compor Niebla del Riachuelo”, observou ao Terramérica o vice-presidente-executivo da Autoridade da Bacia Matanza Riachuelo (Acumar), Antolín Magallanes.

Em 2008, o Supremo Tribunal de Justiça determinou o saneamento do Riachuelo à Acumar, integrada pelos governos nacional, provincial e da capital, e que envolve os 14 municípios da bacia. “Em 30 anos de democracia, a criação da Acumar (em 2006) é um tremendo avanço histórico, porque pela primeira vez permitiu que três jurisdições possam articular uma gestão, que a sociedade civil controla, inclusive gestões nem todas da mesma cor política”, destacou Magallanes.

“Isso é parte do saneamento. Não é apenas o lixo que está no rio, porque o lixo que está no rio expressa a não união anterior de todas essas partes”, acrescentou Magallanes. Na bacia vivem mais de cinco milhões de pessoas, 10% em bairros pobres. Desse total, 35% carecem de água potável e 55% de esgoto.

Entre outros resultados, o plano removeu cerca de 60 navios abandonados no rio, que a metáfora do tango descreveu como um “turvo cemitério de embarcações que, no entanto, ao morrerem sonham que para o mar partirão”. Também retirou cerca de 1.500 toneladas de resíduos sólidos do espelho de água e das margens, e abriu uma trilha de 35 metros para limpar a margem e assim poder ter acesso, controle e saneamento do corpo de água.

Também foram incorporados 1,5 milhão de habitantes à rede de água potável e agora são feitas avaliações sanitárias em áreas de risco e estão sendo construídos 14 centros de saúde. “Estamos cobrindo algo que não existia: um perfil em saúde ambiental específico da bacia Matanza Riachuelo, que dará novos resultados”, destacou Magallanes.

A não governamental Fundação Ambiente e Recursos Naturais (Farn) diz que, embora “o que foi feito seja necessário, é muito pouco em relação a tudo o que resta fazer”. “Estruturalmente se fez muito pouco. Com atraso, estão sendo realizadas obras de saneamento para que o Riachuelo não continue sendo uma latrina a céu aberto”, disse ao Terramérica o presidente da independente Fundação Metropolitana, Pedro Del Piero.

Isso começará a sair do papel por meio de um financiamento de US$ 840 milhões do Banco Mundial. Para isso será construído um grande tubo coletor na margem esquerda do Riachuelo, que conduzirá os resíduos de esgoto para diferentes estações de tratamento, para evitar sua descarga direta no rio.

Também serão criadas estações de aeração e um emissário subfluvial, uma grande tubulação subterrânea de 11,5 quilômetros que transportará e descarregará esgoto já tratado até as águas do rio da Prata. Isso permitirá “que usos até o momento inimagináveis, como passear pelo rio e outras atividades recreativas, sejam possíveis”, resumiu Daniel Mira-Salama, do Banco Mundial.

Andrés Nápoli, diretor da Farn, também pede um controle mais rigoroso da poluição industrial, junto com leis que mudem as atuais, “que são extremamente permissivas”. A organização ambientalista Greenpeace denunciou em junho que não havia melhoria na qualidade da água, devido à presença de 0,5 miligrama de oxigênio por litro, quando seriam necessários cinco miligramas para a vida aquática.

Outro informe, este da Cruz Verde Internacional, destaca que o solo ribeirinho tem níveis muito altos de zinco, cobre, níquel e mercúrio, entre outros elementos. Magallanes desqualificou o documento dizendo ser “velho”, por se basear em dados do triênio 2008-2010. De um total de 15 mil fábricas registradas na bacia, 459 já fizeram a reconversão e outras 1.300 estão em processo de fazê-lo, entre elas as mais contaminantes.

Ali existe uma “tensão muito grande”, admitiu Magallanes, para quem a bacia é “uma espécie de metáfora da Argentina”. É “o lugar por onde passaram a conquista, o desenvolvimento e a revolução industrial”, e que a crise nacional de 2001 castigou com o fechamento de indústrias e desemprego, pontuou. “Isso implica muitas condutas bastante arraigadas que precisam mudar, e que as empresas aos poucos vão tomando consciência”, acrescentou.

Um jovem observa a ponte transportadora de La Boca, construída em 1914 e que deixou de funcionar em 1960. Este emblema do Riachuelo e de Buenos Aires está sendo recuperado, como parte do saneamento da bacia, e tem reinauguração prevista para 2015. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS
Um jovem observa a ponte transportadora de La Boca, construída em 1914 e que deixou de funcionar em 1960. Este emblema do Riachuelo e de Buenos Aires está sendo recuperado, como parte do saneamento da bacia, e tem reinauguração prevista para 2015. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS

Nápoli atribui a lentidão à “grande malha de interesses políticos e econômicos da cornubação de Buenos Aires”, agravada pelas “disputas políticas” de diferentes “cores políticas”, entre o governo da presidente Cristina Fernández e a oposição que governa a capital. A Acumar “está o tempo todo à mercê dos avatares políticos dos funcionários federais de plantão”, concordou Del Piero. Para Magallanes, são dificuldades normais dentro a democracia. “Antes, cada jurisdição fazia sua limpeza, tinha seu manual de instrução, ou não faziam nada”, apontou.

A Acumar reassentou 122 famílias de áreas de risco, está construindo mais de 1.900 casas e avança com outros 1.600 projetos. Mas Nápoli considera insuficiente. “Há pessoas vulneráveis na beira de riachos, ou convivendo com indústrias que contaminam. Seis anos depois da decisão do Supremo Tribunal não sabemos quem está em risco”, ressaltou. Também considera urgente a remoção de lixões de diferentes dimensões. Dos 186 retirados da bacia, 70% ressurgiram, acrescentou Nápoli, para quem a origem do problema é uma gestão que “entregou” o lixo “ao controle” dos municípios.

Para solucioná-lo, a Acumar está estabelecendo estações de tratamento de resíduos sólidos urbanos municipais. “Na dissipação definitiva da névoa do Riachuelo, vamos por um caminho muito positivo. Da tensão à transformação”, disse Magallanes. “Naturalmente, falta um monte de coisas para fazer. Mas todos já estamos discutindo o rio. Isso é bom. É parte dessa recuperação”, enfatizou. Envolverde/Terramérica

* A autora é correspondente da IPS.

 

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