“Eu bati nele, sim, pra corrigir. Mas não queimei, não. Só fiz coisa normal de uma mãe.”
A declaração foi dada nesta segunda à TV Globo pela mãe acusada de trancar os três filhos em casa em Itapecerica da Serra (SP). Segundo o filho mais velho, de 12 anos, que ligou para a polícia a fim de pedir ajuda, ela também teria usado água quente para queimá-lo. Um inquérito policial foi instaurado.
Independentemente do que a investigação apontar, o que me chama a atenção é a declaração da mãe, que destaquei acima: “…coisa normal de uma mãe”. E, o pior, é que, na grande parte das vezes, isso é verdade.
Lembrar é viver: em julho do ano passado, o Datafolha apontou que 74% dos homens e 69% das mulheres já haviam apanhado dos pais e que 69% das mães e 44% dos pais admitiram ter batido nos seus pimpolhos. Sim, assim como a cor da íris, o olho roxo também é hereditário.
Isso também explicava o fato de 54% dos entrevistados serem contra a lei proposta do governo federal que proíbe socos, palmadas, beliscões, empurrões, chineladas, enfim, castigos físicos, em crianças. Hoje, o Estatuto da Criança e do Adolescente ainda não especifica o que são maus-tratos, o que cria uma larga possibilidade de análise subjetiva por conta do poder público encarregado de zelar pela qualidade de vida dos pequenos. A Lei da Palmada ainda está tramitando no Congresso.
Retomo o que já discuti aqui porque o momento pede. Sei que muitos pais que amam seus filhos e são zelosos por sua educação acreditam que uma palmada em determinadas circunstâncias extremas pode ter um efeito simbólico poderoso. Mas, ao mesmo tempo, fazendo reportagens sobre a infância, não raro ouvi um complemento explicativo para isso que se repetia como um mantra: “apanhei quando pequeno e isso me mostrou limites, ajudou a formar o caráter que tenho agora”.
A ideia é muito semelhante ao já manjadíssimo “trabalhei quando criança e isso formou meu caráter, portanto sou a favor de criança ter que trabalhar para não ficar fazendo arruaça na rua”. Frase que os meus amados leitores a-do-ram.
Afinal de contas, boa parte dos comentários postados sobre o tema neste blog são maniqueístas: ou a criança tem que ser burro de carga ou vai assaltar nos semáforos – não existe a opção estudar-brincar-crescer. Até entendo que muita gente sinta que sua experiência de superação seja bonita o suficiente para ser copiada pelo seu filho. Mas será que eles não imaginam que fariam um bem enorme se resolvem dar um basta a certas práticas e não ensiná-las à geração seguinte?
Pois, alvíssaras! Se “o trabalho liberta”, a “palmada educa”.
Não estou dizendo que um ato é igual ao outro, mas é interessante notar que ações envolvendo algum tipo de violência contra crianças têm em si a reprodução de modelos aprendidos. Ou seja, “…coisa normal de uma mãe”.
(E deixando de lado a reflexão, dezenas de leitores vão certamente defender o sagrado direito de bater em seus filhos. Duvida? Acompanhe os comentários.)
Educar alguém não é fácil. Eu, por exemplo, era uma peste quando criança (e sigo até hoje…) – portanto agradeço enormemente aos meus pais pela educação que me deram. Mas o ser humano evolui, a sociedade evolui, não precisamos permanecer com velhas práticas simplesmente porque foram adotadas em nossa infância ou na infância de nossos pais.
Há um ano, quando tratei deste assunto, contei a história de uma amiga que me confessou, pela primeira vez, ter dado umas palmadas leves em seu filho, pois havia esgotado o repertório para deixar claro que ele estava extrapolando. Para sua tristeza foi chamada na escolinha porque o filho, que é calmo, começou a bater em seus colegas.
Isso significa que todo mundo que levou palmadas vai virar um serial killer de nível 21 na escala de maldade? Ou alguém tipo Dexter? Claro que não.
Educar alguém não é fácil. Ainda mais quando os pais têm que passar o dia inteiro fora para dar de comer às crianças e garantir a elas uma vida digna.
Dependendo da circunstância e do ambiente em que a criança está inserida, castigos físicos geram consequências sim para a sua formação, que podem ser inesperadas. No mínimo, fica a pergunta: qual o exemplo de respeito ao diálogo, à tolerância, ao entendimento e a soluções não violentas estamos dando com o uso desses métodos?
O quanto estamos sendo os nossos pais e os pais deles e não nós mesmos nesse momento?
Por fim, a sistemática ausência do Estado e a mais sistemática ação de determinados grupos ditos liberais de reduzir a importância da ação estatal ajudou a espalhar cada vez mais aberrações do tipo “o Estado não deve regular nossa vida”. Quando, na verdade, leis que criminalizam a violência contra a criança estão criando regras para balizar mais liberdade e menos dor. Afinal de contas, “eu dei a vida a ele e posso tirá-la também”, como já ouvi de uma mãe (sic).
Para muita gente, a discussão deveria sair do âmbito das políticas públicas (que existem exatamente para dar apoio a grupos fragilizados) e passar unicamente para o espaço privado. Pois o Estado tem que se preocupar com coisas mais importantes, como auxiliar o capitalismo brasileiro a se desenvolver serelepe, passando sobre populações tradicionais em gigantescas hidrelétricas.
Por esse pensamento, leis que concederam direitos e que dependeram da ação do Estado, mesmo indo contra grupos numericamente relevantes ou economicamente poderosos, nunca teriam sido aprovadas.
Por que os mesmos que apoiam a palmada não bradam pelo direito de bater em idosos, se estes chegarem à senilidade, como forma de “educar”?
Talvez porque saibam que crianças eles já foram. Mas, idosos, ainda serão.
* Publicado originalmente no Blog do Sakamoto.