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“Investir no combate à fome deixa um extraordinário retorno”

José Graziano da Silva assumirá a direção-geral da FAO em janeiro de 2012.

Salvador, Brasil, 7/12/2011 – O homem que desempenhou um papel fundamental no desenho das exitosas políticas alimentares do Brasil acredita que é possível erradicar a fome no mundo e se propõe a tentar fazer isso com uma “ideia simples”. Trata-se de elevar o compromisso político, mobilizar recursos inclusive modestos e adotar objetivos absolutos, disse em entrevista à IPS José Graziano da Silva, ex-ministro de Segurança Alimentar, que em janeiro assumirá a direção geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, que propõem reduzir pela metade a proporção de população com fome até 2015, dificultam muito a mobilização política. É preciso estabelecer metas absolutas, afirmou Graziano. Baseado na experiência brasileira do programa Fome Zero, Graziano afirmou que tudo o que se investe nessa luta é bom negócio.

Este agrônomo e economista também qualificou de “paralisante” o combate ao grande negócio agrícola que encabeçam movimentos sociais como a Via Camponesa. Não existe essa oposição entre pequena agricultura e agronegócio, segundo Graziano. “Boa parte da agricultura familiar hoje em dia está envolvida na cadeia agroalimentar do agronegócio”, afirmou. A seguir uma síntese do diálogo frente a frente com a IPS.

IPS: Já quase se supera a barreira de um bilhão de pessoas sem o suficiente para comer. Qual será sua proposta central na direção da FAO para erradicar a fome?

JOSÉ GRAZIANO DA SILVA: Minha ideia é bastante simples. É preciso combinar três elementos. Primeiro, o compromisso político dos países mais pobres para erradicar a fome. Pretendo iniciar uma consulta com os países com crises prolongadas, pobres e importadores de alimentos – sobretudo na África e alguns na Ásia –, para que aportem esse compromisso político e também seus recursos. Porque esses países têm recursos. A experiência do Brasil mostra que esses recursos são rapidamente recuperados. O investimento no combate à fome tem um retorno extraordinário. No caso brasileiro, imediatamente o circuito do consumo (de quase 25%) regressou como impostos e geração de emprego e renda. Na FAO, vamos ajudar esses países a preparar planos viáveis e a encontrar recursos. Em segundo lugar, então, mobilizar os recursos nacionais e envolver não apenas a FAO, mas o Programa Mundial de Alimentos e o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida). E, em terceiro, é preciso ir além das metas do milênio. Porque é muito difícil a mobilização política após o objetivo de reduzir pela metade a proporção. É necessário estabelecer metas absolutas. Creio que essas três condições são viáveis para que a FAO possa se voltar efetivamente para esse eixo de erradicar a fome.

IPS: A agricultura está diante de várias encruzilhadas, entre elas o impacto da mudança climática e a degradação dos solos. Como pensa intervir nestes aspectos?

JGS: Um dos cinco pilares de minha campanha foi promover um desenvolvimento mais sustentável da produção e do consumo. Uma revolução duplamente verde. Um exemplo é a Argentina, que hoje tem entre 90% e 95% de sua produção de grãos com semeadura direta, sem remover o solo. Isto reduz ao mínimo a erosão. Uma das grandes perdas da agricultura tropical é a de solos e o avanço da desertificação, pelo uso intensivo de máquinas. Pela restrição atual dos fertilizantes químicos – sobretudo por preço e disponibilidade – encontramos maneiras de substituí-los por outros adubos naturais. E, assim, há um conjunto de tecnologias nos países em desenvolvimento que praticam agricultura tropical. Outro pilar de minha campanha é o aumento da cooperação Sul-Sul.

IPS: O grande agronegócio exportador e a expansão de cultivos que ocupam áreas cada vez mais extensas (soja, palma, reflorestamento industrial) competem com a produção de alimentos como a pecuária e as hortas. Como vê esses desafios?

JGS: Infelizmente, alguns setores do movimento social têm uma visão muito prejudicial para eles mesmos e, em certo sentido, paralisante: opor o desenvolvimento da agricultura familiar ao agronegócio como se competissem. O agronegócio é mais um marketing. O conceito emergiu nos Estados Unidos nos anos 1950 para fazer lobby no Congresso por mais subsídios para a agricultura, e envolvia as indústrias fornecedoras de insumos, as processadoras e toda a cadeia agroalimentar. Nesse sentido, é um conceito unificador, e creio que boa parte da agricultura familiar hoje em dia está envolvida na cadeia alimentar do agronegócio. Não há como fugir dessa trajetória. Por isso, me parece paralisante a proposta de combater esse modelo. É muito mais sensato para os agricultores familiares lutar pelo desenvolvimento de mercados locais, que valorizem alimentos frescos, nutritivos e que não têm mercado internacional. Na América Latina temos o feijão em toda a América Central, e no Brasil a mandioca, que são alimentos da cesta básica, e os países andinos têm a quinoa e o amaranto. Nem todos comem carne. Há outras formas de proteínas animais e vegetais que se perderam com o desenvolvimento dos produtos alimentares. Essa redução (80% da população mundial come com base em quatro produtos: trigo, milho, arroz e soja) é uma grande ameaça para a população mundial, sobretudo porque aponta para um tipo de dieta cada vez mais energética. São cereais e gorduras, oleaginosas. E a obesidade é um problema grave em quantidade de pessoas afetadas. Temos mais de um bilhão de obesos. Ampliar a base alimentar com a diversificação produtiva da agricultura familiar para abastecer mercados locais me parece um caminho positivo que não confronta o agronegócio.

IPS: A expansão de cultivos alimentares para produzir combustíveis contribuiu para o aumento de preços. Vozes críticas asseguram também que, por serem grandes monoculturas, contribuem para o desequilíbrio do meio ambiente, como no caso da cana-de-açúcar no Brasil, a palma em vários países latino-americanos e asiáticos, o milho nos Estados Unidos. Qual sua posição?

JGS: Vou utilizar a retórica do Lula (o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva) de seu discurso de 2008 na FAO. Ele disse que “os biocombustíveis são algo muito genérico, há de tudo debaixo desse guarda-chuva. E assim como o colesterol, é preciso separar o bom do ruim”. Há um biocombustível que afeta o preço dos alimentos, o milho, porque é o insumo básico de muitas cadeias alimentares. Estudos da FAO demonstram que tem impacto porque afeta preços de outros produtos, inclusive da soja, pois têm mercados interligados. Também existe algum impacto em oleaginosas, como a colza na Alemanha, pela competição com a água, com os recursos naturais. Na Malásia existe temor de que a expansão da palma acabe com a biodiversidade das florestas naturais. Porém, não há um impacto dos biocombustíveis em geral sobre os preços. No caso da cana-de-açúcar no Brasil, isto está demonstrado. Primeiro, porque é mínimo. Apenas 3% do solo é utilizado para o etanol de cana. Segundo, porque o circuito da cana no Brasil não compete com o sistema agroalimentar. Tem seus canais próprios. Nem todos têm a mesma disponibilidade de terra e água para produzir biocombustíveis. Na FAO, fizemos um estudo país por país da América Latina, como deve ser feito, e comprovamos que quatro podem expandir a produção de biocombustíveis sem afetar a segurança alimentar: Brasil, Argentina, Paraguai e Colômbia. Estes países têm uma variável de ajuste que é o grande segredo moderno, por assim dizer. Existe ali uma transição da pecuária extensiva para a intensiva, e isto libera uma enorme quantidade de recursos de terra e água e limita tremendamente a pressão da expansão da fronteira agrícola sobre selvas e florestas. É uma radical mudança de modelo. São países que integram as produções pecuária e agrícola com Europa, Estados Unidos e setores do Pampa úmido.

IPS: Outro tema novo são as aquisições de terras agrícolas por empresas e inclusive governos de terceiros países na África e em outras regiões do mundo em desenvolvimento. Qual a sua visão sobre este fenômeno?

JGS: Acabamos de finalizar um estudo em 17 países da América Latina, segundo o qual, em termos de volume, o impacto é importante no Brasil e na Argentina. Outros sentem o problema em áreas de fronteira, mas como consequência de movimentos de população, há muito mais tempo. Aí estão Paraguai e Uruguai afetados pela expansão brasileira no agronegócio da soja. Entretanto, não encontramos evidências em outros países. Encontramos uma grande preocupação de países e governos para recuperar uma legislação que lhes permita ordenar seu território. Por exemplo, no sul do Chile, há empresas que compram grandes extensões de terra para preservar florestas, ou impedir a construção de represas hidrelétricas ou de estradas. Os países têm de atualizar as legislações de terras, muitas copiadas dos Estados Unidos do Século 18, quando toda concepção era para evitar que um país pudesse povoar a fronteira de outro. Contudo, esta concepção já não corresponde à mobilidade de capitais de hoje. Os países pedem ajuda à FAO para designar outros mecanismos que assegurem o controle de seus territórios. Por exemplo, uma base informativa. A grande maioria das nações da região nem mesmo tem informação sobre os que compram as terras.

IPS: Qual foi a intenção ao ampliar e reformar o Comitê de Segurança Alimentar Mundial?

JGS: A intenção foi atrair setores que até agora eram observadores da sociedade civil para que falem nas mesmas condições que os países na luta contra a fome, e o mesmo vale para o setor privado, os dois componentes que ingressam no Comitê com a reforma. É preciso incluir todos nesta luta, que deve ser global. Isto recém-começou, mas agora existe um plano para se conhecer e encontrar o caminho. A reforma acontece tarde, e há uma forte pressão para que responda imediatamente com ações mais concretas. Envolverde/IPS