A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), aprovada pela Câmara Federal em agosto de 2010 e regulamentada em dezembro do mesmo ano, começa a sair do papel agora, com empresas e municípios planejando a logística reversa para garantir o destino correto dos produtos descartados. O que isso vai mudar na vida não só das empresas, mas de nós, cidadãos? Vamos analisar aqui as mudanças e oportunidades que a logística reversa pode trazer para avançarmos na direção de uma economia inclusiva, verde e responsável.
A PNRS tramitou pelo Congresso por mais de vinte anos, em razão daquilo que ela tem de mais inovador ainda hoje: estender a responsabilidade sobre a destinação de resíduos sólidos para todos os geradores – indústria, comércio, serviços, consumidores e municípios –, o denominado “princípio da corresponsabilidade pela geração de resíduos”.
Quando, finalmente, ela foi aprovada, a questão do destino dos resíduos sólidos da cidade e do campo já entrara na pauta de negociações internacionais como parte de uma discussão maior de estabelecimento de padrões de produção e consumo sustentáveis.
“Destino adequado dos resíduos sólidos” traz, embutido, outro conceito, com o qual os brasileiros vão se acostumando – o de “!ogística reversa”. O que é, afinal, logística reversa? Trata-se de uma operação que planeja, opera e controla o fluxo físico e de informações do retorno dos bens de pós-venda e de pós-consumo ao ciclo de negócios ou ao ciclo produtivo. Essa definição é do Conselho de Logística Reversa do Brasil (CLRB), entidade fundada em 2008 para melhorar e compartilhar o conhecimento e as práticas a respeito do tema no Brasil.
A PNRS tem um capítulo inteiro para tratar de logística reversa, no qual elege como prioritários para início do processo reverso os setores de embalagens de agrotóxicos e de óleos lubrificantes, pilhas, baterias e pneus, eletroeletrônicos, lâmpadas e medicamentos. Outros setores que também impactam o meio ambiente e a saúde pública serão incluídos gradativamente.
A logística reversa nas empresas
O processo que o Brasil começa a instituir – de retorno e reaproveitamento de materiais na produção – ainda não tem similar nos países emergentes. Já há experiências bem-sucedidas em alguns setores econômicos de países europeus e em ao menos uma indústria – a Interface, maior fabricante mundial de carpetes, pioneira na adoção da logística reversa.
A experiência brasileira, no entanto, está sendo observada com muita atenção porque abrangerá segmentos inteiros da economia e em todo o país, incluindo também o consumidor final.
De acordo com reportagem do jornal Brasil Econômico, o CLRB calcula que a logística reversa gera negócios de R$ 18 bilhões anuais para transportadoras, empresas de reciclagem, de tecnologia e outros. A expectativa é que essa cifra dobre nos próximos anos, quando as empresas serão obrigadas a ter a logística reversa já totalmente instituída, inclusive na cadeia produtiva. A legislação estabelece 2015 como o ano em que esse processo já esteja resolvido, com a adequada destinação de papel, plástico e demais materiais descartáveis. Por isso, é preciso que as empresas comecem desde já a mudança.
Outra medida da lei é a proibição de lixões a partir de agosto de 2014. Essa data “fatal” também impõe um desafio para as prefeituras: organizar a coleta de lixo em separado dos resíduos sólidos, construir e manter aterros sanitários e ampliar a fiscalização para evitar o abandono de materiais em rios, lagos, terrenos e vias públicas, como acontece hoje.
De acordo com levantamento da Associação Brasileira de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), em 2010 foram gerados 61 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos, 7% a mais do que em 2009. Apenas uma parcela inferior a 10% de todo esse montante voltou para reciclagem e reaproveitamento.
Os gargalos começam nas próprias cidades. O IBGE constatou, também em 2010, que 40% dos 2.400 municípios brasileiros não têm coleta seletiva e 11% da população brasileira não é atendida por nenhum tipo de serviço de coleta. Mesmo na cidade de São Paulo, apenas 3% dispõem de coleta seletiva.
O país tem vários desafios a superar para que o processo básico da logística reversa funcione bem – a coleta seletiva. Sem isso, não se pode garantir nem o retorno do produto à cadeira de produção nem a destinação correta dos eventuais resíduos.
De acordo com o Compromisso Empresarial para a Reciclagem (Cempre), existem três grandes desafios a superar para que a logística reversa decole no Brasil:
• educar a população sobre o descarte correto de resíduos;
• desonerar a indústria da reciclagem – nas condições atuais, o produto reciclado é às vezes mais caro do que o novo; e
• ampliar o parque reciclador.
Catadores: diferencial brasileiro que chama a atenção do mundo
Hoje, mais de 1 milhão de brasileiros trabalham como catadores de material reciclável, a maioria deles organizada em cooperativas. Tais grupos participam da coleta seletiva em diversas cidades, com apoio das prefeituras e mercado garantido pelas empresas de reciclagem.
Os catadores e suas cooperativas estão organizados em um movimento nacional e foram vitais para que a PNRS incorporasse as cooperativas na legislação. Com isso, catador também virou profissão, incluída no Cadastro Brasileiro de Ocupações (CBO).
Graças às cooperativas, o Brasil tem altos índices de reciclagem de papel e de latas de alumínio, por exemplo. Com isso, o mundo passou a olhar para cá em busca desse nosso diferencial: o catador e sua luta para ser considerado “agente ambiental”, uma profissão do futuro.
Mesmo antes de sair do papel, a PNRS chama a atenção por ter mostrado como é possível a um marco regulatório atender demandas ambientais complexas – pois envolvem transformação produtiva em larga escala – com inclusão social e distribuição de renda.
É importante ressaltar o papel do catador porque há discussões, mesmo dentro dos governos, de adotar modelos de gestão de resíduos que não incluam suas cooperativas. Acontece que essas cooperativas podem representar o diferencial competitivo das empresas brasileiras, porque o modelo que elas oferecem elimina intermediários e, portanto, custos. Mais do que isso, garante dignidade para milhões de brasileiros e brasileiras que, com seu trabalho, podem ser agentes e beneficiários ativos do progresso do país.
* Jorge Abrahão é presidente do Instituto Ethos.
** Publicado originalmente no site do Instituto Ethos.