No final de 2001 fiz um balanço do ano, marcado tragicamente pelo 11/9. Não foi o único evento marcante do ano, embora tenha sido o mais terrível. Outros teriam efeitos também de longo prazo, nenhum com consequências tão sangrentas. Analisei os fatos que me pareciam mais definidores dos rumos dos anos seguintes e arrisquei algumas previsões. Como em toda previsão, nem tudo naquele início tormentoso da transição, na primeira década do século, seria como parecia que poderia ser. Coisas da vida de comentarista da cena cotidiana. Resolvi reproduzir aqui a coluna de 28 de dezembro para No. a revista eletrônica editada por Marcos Sá Corrêa, da qual era colunista.
O ano de 2001 ficará na história, mais que os seus antecessores diretos. Do ponto de vista da nova ordem global, marcará o fim histórico do Século XX, quando a Guerra Fria foi definitivamente encerrada como parâmetro para as ações estratégicas dos estados. O ataque de 11 de setembro às torres gêmeas – no centro financeiro do capitalismo – e ao Pentágono, aposentou a velha doutrina de segurança nacional e tornou dominante a ideologia do antiterrorismo, como justificativa para a ação militar preventiva e punitiva da potência hegemônica. Isto mudou os termos da globalização. Ela deixou de ser eminentemente financeira e comercial, sob o comando hegemônico e exclusivo dos mercados de capitais e das coalizões comerciais, para ser predominantemente política e econômica. Desta forma, as decisões comerciais e financeiras passarão a sofrer influência das considerações de ordem política e estratégica dos governos. As alianças globais se refarão.
A reunião da Organização Mundial do Comércio, em Doha, que lançou a “Nova Agenda para o Desenvolvimento”, já foi um sinal desses novos tempos. A “Rodada de Doha”, como se verá, será muito diferente das de Tóquio e do Uruguai e não apenas no sentido óbvio de que a agenda será diferente. Ela se diferenciará pelo comportamento dos parceiros e pelas mudanças nas coalizões comerciais e na correlação de forças. É provável que, movido por considerações estratégicas, o EUA apóie, nesta rodada, mudanças no campo dos subsídios à agricultura, afastando-se do “consenso europeu”. Terá a seu lado outras nações de agribusiness, de alta tecnologia e mais competitivo, como Brasil, Nova Zelândia e Austrália. É muito provável também que, como resultado dessas mudanças na ideologia da globalização, se inicie uma discussão mais séria sobre a reforma do FMI e do Banco Mundial, organismos oriundos de Bretton Woods – outra marca do fim do Século XX que deixamos para trás. É mesmo possível que ela comece na controvérsia em torno do que fazer em relação à moratória Argentina, que deverá ocupar as atenções no primeiro bimestre do ano que vem. Justiça seja feita, o Banco Mundial já mudou bastante a sua agenda e seu comportamento. O FMI é que continua paralisado e perplexo diante de sua inadequação a toda a história cambial e monetária da última década do século passado, o que dizer dos eventos deste novo século.
Após uma década de predomínio do mercado sobre a política, o atentado de 11 de setembro restabeleceu a primazia da política nas relações internacionais. O “consenso neoliberal” “economicizava” a política, ao estabelecer que o mercado deveria ficar livre dela, para aproveitar as oportunidades abertas pela globalização. Houve uma despolitização das relações internacionais e, mesmo, da política econômica da maioria dos países. Claro, uma despolitização relativa, porque a economia é sempre economia política. Mas o atentado restabeleceu o primado do interesse político nas relações internacionais e demarcou uma área na qual se e quando a visão do mercado e o interesse político conflitarem prevalecerão, novamente, as razões de estado e não mais puramente as razões de mercado.
Na América Latina, o trágico colapso da convertibilidade argentina também encerra o ciclo de estabilizações que marcou o último terço do Século passado no continente.
No Brasil, o fim simbólico da impunidade parlamentar, com a expulsão de dois ícones do poder oligárquico do Senado da República, de certa forma marca o fim do padrão de política do Século XX no país. No ano que vem, provavelmente, a sucessão de Fernando Henrique será decidida por políticos que não fizeram parte desse padrão. Se confirmada a candidatura de Roseana Sarney, ela será a única oriunda de uma linhagem oligárquica, ainda que de nova geração e se dispondo a concorrer em uma eleição não qual os recursos da oligarquia já não têm mais o peso definitório que tiveram no passado.
Portanto, em vários sentidos, o reveillon no qual comemoraremos a passagem de 2001 para 2002 será o mais importante dos últimos três. Em 2002 estaremos, em termos históricos, no terreno cediço da zona indefinida entre um século e outro. Definitivamente, já deixamos para trás o Século XX, mas não é totalmente certo que já estejamos no Século XXI.
A história do ano
Um breve passeio pela história deste ano mostra como as situações se alteraram de forma muitas vezes inesperada, mas sempre vertiginosa. Essa velocidade é sempre indicadora de que há catalisadores históricos e estruturais em operação, provocando a condensação de uma longa cadeia de eventos – muitos que só serão identificados a posteriori pela análise histórico-comparativa – em um punhado de eventos marcantes e altamente visíveis. Nada acontece por acaso. Nem mesmo o caos.
É dessa forma que a “grande história” se faz. Essa é a morfologia das transições entre velha e nova ordem. Há um momento em que novo e velho convivem, como nas charges do encontro entre o ano que passa – desenhado como um velhinho arqueado – e o que começa – apresentado como uma criança rechonchuda e vivaz – os velhos elementos ainda não foram inteiramente superados, mas a ordem emergente já se instalou e já comanda os eventos mais relevantes.
É assim com a história dos anos que fazem história.
Do soft landing ao novo crash
No EUA, no final de 2000, a discussão era se a economia teria um soft landing, uma desaceleração suave, ou um mergulho abrupto na recessão. O ano termina contando uma história diferente desses dois cenários polares. A desaceleração começou ainda em 2000: no terceiro trimestre, o crescimento do PIB já havia caído de robustos 5,7%, para magros 1,3%. No mesmo período deste ano, já houve perda de produto, de -1,3%. O último trimestre deve confirmar essa tendência. O ano fecha com a discussão sobre a “decolagem” da economia americana – se ela vai ou não ocorrer em 2002, se já há sinais dela em alguns indicadores – e a recusa pelo Senado de maioria democrata do pacote de estímulos à economia apresentado pelo presidente Bush, aprovado na Câmara.
No plano político, o ano americano começou com a apresentação de um gabinete muito conservador pelo presidente Bush e com cheiro da naftalina da Guerra Fria na área militar e de segurança nacional. O presidente tentou encontrar rapidamente um inimigo externo, para exercitar essa musculatura, posta em desuso por Bill Clinton, portanto sem uso desde o governo de Bush pai. Não teve credibilidade.
Foi atendido, de forma trágica, em seu desejo de comandar alguma guerra, pelo ataque terrorista a Manhattan e ao Pentágono. Termina o ano tendo vencido uma batalha sem muito sentido. Logrou a derrubada do Talibã, no Afeganistão, substituído por um governo provisório, heterogêneo e frágil, que provavelmente sucumbirá à guerra intestina, movida pelos pequenos senhores da guerra locais. Definiu como meta destruir a Al Qa’ida e capturar ou matar Osamah bin-Ladin. Ninguém será capaz de dizer quando e se a Al Qa’ida foi destruída. Osamah bin-Ladin se dedica a provocar Bush, em vídeos filmados em local e data desconhecidos, que tanto podem ser atestado da alta capacidade de previsão do líder terrorista, quanto improvisos de última hora.
O verdadeiro crash de Wall Street não se deu quando as ações das empresas de tecnologia e informática despencaram. Aquilo foi apenas o estouro de uma bolha especulativa e o fim da insensatez. Uma mania, que virou pânico, para citar um clássico estudo sobre crises financeiras, de Charles Kindleberger, Manias, Panics, and Crashes, A History of Financial Crises, publicado em 1978. O verdadeiro crash se deu quando as Twin Towers do World Trade Center ruíram com o impacto dos dois aviões seqüestrados e pilotados por terroristas.
Foi esse crash que lançou o país em uma guerra nas sombras da Ásia Central e a incerteza sobre a economia doméstica e mundial. Provavelmente 2002 será o ano da recuperação. Mas Wall Street não será mais a mesma que aquela que acordou com apreensões financeiras e pânicos rotineiros e terminou o dia abalada por uma agressão brutal. Foi indelevelmente marcada e alterada pela maior tragédia diretamente vivida por aquele pedaço da bela ilha de Manhattan. Tampouco a glamourosa, cosmopolita, rica e criativa New York será mais a mesma.
A queda das oligarquias
Em 2000, o PT colheu algumas vitórias significativas nas eleições municipais, no vazio deixado pelas oligarquias em crise, principalmente em cidades do Nordeste. Não foi a primeira vez que o domínio oligárquico foi posto em cheque pelo avanço eleitoral de um partido apoiado por uma parcela organizada dos assalariados. No passado, esse avanço acompanhava o progresso da manufatura. Primeiro vinha o sindicato e, no seu rastro, o PTB. Agora, a fraqueza das oligarquias favorece o PT com o voto principalmente de assalariados do setor público, por causa do rompimento dos nexos clientelistas entre os chefes políticos e o serviço público.
Em uma análise dessas eleições, escrevi o seguinte sobre esse fenômeno: “Quando se examina qualitativamente os resultados eleitorais, por município e por estado, aparecem tendências que são duradouras na história política do Brasil. Por exemplo, o avanço do PT nos municípios de menor porte e menor desenvolvimento. O PT ganha eleições em circunstâncias que marcam o fortalecimento de organizações populares, ou divisão e conflito nas oligarquias ou, ainda, maior peso do funcionalismo público e presença de sindicatos do setor público atuantes, sob controle da CUT. Nos municípios mais organizados politicamente, nos quais a população é mais politizada e mobilizada para a atividade política, continua valendo a velha lei eleitoral: esquerda dividida/direita vitoriosa, direita dividida/esquerda vitoriosa.”
Do mesmo modo que no passado eram sinais de fraqueza oligárquica, que prenunciavam mudanças políticas mais abrangentes. Não necessariamente a vitória nacional e avassaladora de um só partido antioligárquico. Há mais que uma força antioligárquica no Brasil de hoje. Algumas muito distantes do PT. Mas é o fim de um ciclo da política nacional.
Em 2001, o ano político começou com muita gente achando que Antônio Carlos Magalhães, o símbolo desse poder oligárquico, modernizado e reciclado, não obstante oligárquico, era todo-poderoso. Muitos até julgavam que ele seria a eminência parda do governo FHC, manobrando nos desvãos dos corredores do poder. Em maio, esse poder se mostrou ilusório. ACM era defenestrado do Senado que presidira. Saiu irrevogavelmente da primeira página, para ocasionais fotos em colunas sociais, que cobrem eventos de alcance nacional, como desfiles de moda ou shows de música, na Bahia, onde continua, não obstante a reinar. Mas já enfrenta seus percalços e dificilmente terá a mesma eficácia hegemônica que exerceu por três décadas.
Essa defenestração simbólica marcou um momento importante da política brasileira. Teria como subproduto a expulsão de outro chefe oligárquico, de linhagem algo diferente e antagônica, no exercício da presidência do Senado. Em setembro, Jader Barbalho viveu seu dia de crash, desaparecendo da cena política nacional. Na seqüência desses eventos simbólicos, o Congresso fechou o ano votando o fim da imunidade para crimes comuns – ainda que de desfaçatez incomum – que abrigava a mais escandalosa impunidade.
A sucessão deu alguns sinais vitais, que podem ser efêmeros, mas já indicam que tudo o que se imaginava em janeiro de 2001, pode não acontecer em outubro de 2002. Muitas certezas ficaram abaladas. Muitas vitórias, cantadas com antecipação, perderam o rebolado. Eleição é assim mesmo. Uma caixa de surpresas.
O ano começou com consumidores otimistas. O índice de confiança do consumidor em janeiro estava quase 10% abaixo do de janeiro de 2000. A razão era a recuperação da economia, que começara lentamente no último trimestre de 99. No início de 2001, o PIB já contava seis trimestres positivos. Muita gente acha medíocre o desempenho da economia brasileira, nos últimos dois anos. Eu não acho não. Foram anos de muita turbulência externa e nossa economia mostrou robustez e não fragilidade, como pensam alguns.
No meio do ano, com toda razão, ficamos pessimistas. Em junho, o índice de confiança do consumidor estava 22% abaixo do de janeiro. Em outubro, estava 5% abaixo da marca de julho. E terminamos o ano mais confiantes. Em dezembro o índice fechou quase 10% acima do de junho. Com toda razão, descolamos da Argentina e, apesar da recessão na Ásia, da desaceleração na Europa e no EUA, vamos fechar o ano em crescimento e com um índice superior ao dos países centrais.
Colapso anunciado
Para a Argentina, o ano havia começado com alguma esperança. O Ministro da Economia, José Luís Machinea, havia conseguido negociar recursos com o FMI para a blindagem da convertibilidade, abalada por percalços domésticos e novas crises financeiras, como a da Turquia, que ganhava virulência em janeiro. Parece que foi há muito mais tempo, né?
Mas não deu. No dia 5 de março, Machinea caía e era substituído por Lopez Murphy, que resistiu apenas 14 dias no ministério. No dia 20 de março, Domingo Cavallo era nomeado ministro, como a última esperança dos argentinos. Era a bala de prata de De la Rúa. Mas, em junho, já estava claro que Cavallo havia caído na armadilha dos “ajustes que desajustam”. Perdia credibilidade. Em julho, escrevi aqui na nossa no.: “A lógica do processo argentino é do tipo bola de neve e aponta para a ruptura, se as causas do desequilíbrio econômico-financeiro não forem efetivamente atacadas. O xis da questão é que o déficit já é sintoma da anemia da sua economia, produzida por deficiências microeconômicas e pela disparidade cambial, que reduzem dramaticamente sua competitividade e seu dinamismo. A estagnação e a recessão reduzem a receita tributária e mantêm o déficit. A falta de confiança daí decorrente inibe os investimentos e torna os consumidores arredios, comprometendo o desempenho econômico futuro. O resultado é “um efeito carcará”: se combater o déficit faz mais recessão e a receita cai mais; se não combater; o país quebra”.
Para concluir que, “Cavallo enfrenta agora um encurtamento geral de seus prazos. Tem pouco tempo para encontrar uma solução, antes que chegue realmente ao limite, seja do crédito – econômico ou político – seja da capacidade de atender aos credores, aos cidadãos e às forças políticas. O Risco Argentina era de 890 pontos básicos, quando Cavallo assumiu – a média do primeiro trimestre foi de 690 – fechou, na terça, 10 [de julho], em 1217. A Argentina está no limite. Cavallo era a última esperança do presidente De La Rúa. Se falhar, pode não ter ninguém para chorar por ele”.
Em outubro, Cavallo já estava rompido com a classe política, especialmente com os governadores. Perdera o apoio de Manuel de la Sota. Já não conseguia ser ouvido pelas autoridades econômicas do EUA, nem pelo FMI. Em novembro, comete o erro fatal. Lança o pacote “déficit zero”, sem a mínima chance de sucesso, interno ou externo, e provoca a imediata reação negativa de políticos e da população. Em dezembro, a explosão social o derruba. Horas depois, como previsto, De la Rúa não resiste à queda de seu principal ministro, a quem ele e o Congresso haviam delegado muito poder, que jamais esteve acompanhado dos elementos necessários à eficácia das decisões por ele propiciadas.
Para a sofrida Argentina, o tango trágico ainda não acabou. O novo presidente, Adolfo Rodríguez Saá, que deveria pacificar o país e presidir a eleições representativas e democráticas, parece ter caído na insensatez movida pela ambição. Descambou para o populismo e a demagogia típicos do velho peronismo. Está prometendo mundos, sem ter fundos. Imagina que, se tudo que fizer der certo, teria o apoio do Congresso, para sua permanência no poder, respaldado por Menem, pelos empresários industriais e por Raúl Alfonsín. Menem é contra as eleições em março, porque não poderia concorrer. Se Saá puder cumprir o mandato de De la Rúa, o ex-presidente estaria habilitado a se candidatar em 2003. Alfonsín não quer eleições, porque teme um julgamento duro demais de seu partido. Prefere deixar o pó da revolta social assentar mais. Os empresários temem que as eleições levem o país mais para a esquerda.
Mas o projeto de Adolfo Saá, além do risco de insucesso econômico, poderá sofrer dura oposição de lideranças justicialistas de peso, todas candidatas às presidenciais, entre elas, Carlos Ruckauf, o político com maior prestígio popular na Argentina, Eduardo Duhalde, Manuel de la Sota, Néstor Kirchner (Santa Cruz) e Carlos Reutemann (Santa Fe).
Suas chances de sucesso são pequenas. As divisões no justicialismo podem se agravar, com a possibilidade de várias candidaturas aberta pela “Lei de Lemas”. A idéia de sublegendas é de extremo risco. Ela incentiva a competição interna porque não ameaça a hegemonia eleitoral do partido – a divisão do voto não beneficia a oposição, porque ao final os votos são somados para eleger o mais votado da legenda. O partido pode se esfacelar nessa disputa, enfraquecendo sua capacidade de usar a hegemonia que detém para garantir a governabilidade. Não seria a primeira vez. Ainda não se vislumbra uma saída efetiva da crise que retire a Argentina simultaneamente da armadilha cambial, da desordem monetária, da depressão econômica, da anemia fiscal – a queda de arrecadação em dezembro pode ser de 25% – e da crise de governabilidade. Existe uma passagem da convertibilidade e dessa desordem monetária para uma nova ordem econômica racional. Do ponto de vista da economia política argentina essa passagem é estreitíssima e não pode ser vencida com demagogia e populismo. O justicialismo pode estar marchando, mais uma vez, por ambição e erro, para a insensatez, tomando decisões que se voltarão contra ele.
É gente, em 2001 assistimos a História, com H maiúsculo, ser feita. Como um vulcão, que se forma de processos que se dão nas profundezas, no âmago das estruturas, invisíveis, para aflorar em explosões espetaculares, cheias de som e fúria.
* Publicado originalmente no site Ecopolitica.