"Está claro que o consenso de Washington já morreu"

Em entrevista ao jornal Página/12, o ministro da Economia da Argentina, Amado Boudou, diz que está se abrindo um novo cenário para o debate da economia mundial. Alguns dos elementos desse debate, acrescenta, apareceram na reunião dos ministros do G-20 e na assembleia conjunta do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. Entre eles, destaca-se o debate sobre a regulação de capitais especulativos e a adoção por parte dos Estados de políticas ativas para promover a inclusão social. “As principais potências do mundo estão assinando o atestado de óbito do Consenso de Washington”, resume.

“As principais potências do mundo estão assinando o atestado de óbito do Consenso de Washington e agora se abriu um debate sobre qual economia vem aí”, disse o ministro da Economia da Argentina, Amado Boudou, em uma entrevista telefônica ao jornal Página/12, desde os Estados Unidos, onde participou dos debates da reunião de ministros de Finanças do G-20 e na Assembleia Anual de Primavera do FMI e do Banco Mundial. Boudou definiu nestes termos a discussão que se deu entre os membros do G-20 no marco da assembleia do FMI. Um dos temas centrais em debate foi a alta de preços das commodities. “Se as potências querem diminuir a fome nos países pobres devem ajudá-los a gerar emprego”, enfatizou Boudou.
Com respeito ao novo índice nacional de preços ao consumidor, precisou que será realizada uma nova pesquisa de gastos e que o resultado será utilizado para os bônus ligados ao CER (Coeficiente de Estabilização de Referência, que ajusta mediante a variação do índice de preços ao consumidor os contratos do mês em curso).

Como se situa hoje a experiência econômica argentina frente ao debate econômico mundial?

O debate sobre o modelo que estamos implementando na Argentina há sete anos está instalado no mundo. As principais potências do mundo estão assinando o atestado de óbito do Consenso de Washington. Uma ideia que começou a morrer em Mar del Plata, quando o Mercosul, pelas mãos de Néstor Kirchner, disse não à proposta da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas). O tema que a Argentina vem puxando é sobre um modelo de inclusão em escala internacional. Nesta reunião vimos que há cada vez mais países somando-se a esse debate. Mesmo dentro do FMI há aqueles que defendem que as crises em países como Egito ou Líbia têm a ver com o abandono da questão social.

Em reuniões anteriores já vínhamos conversando com distintos países sobre a necessidade de se somar aos informes anuais dos organismos, nos quais só aparecem dados macroeconômicos, outros elementos relacionados com registros sociais, trabalhistas e educativos. Nesta oportunidade, fechamos um acordo para defender essa proposta na reunião do Fundo. Espanha, África do Sul, Austrália, Brasil e Argentina mantiveram um discurso uniforme.

Com que argumentos defenderam esse critério de ampliar os elementos de avaliação?

Dizendo que é muito importante incorporar na discussão variáveis que não tenham a ver somente com o aspecto financeiro, mas também com questões sociais e relacionados ao trabalho. É indispensável incorporar variáveis educacionais na análise. Isso tem a ver com o crescimento do capital humano, com um dos principais problemas que os países enfrentam no mercado de trabalho que é a criação de trabalho para os grupos populacionais mais jovens que se incorporam ao mercado. Se não se investe em educação, se não se criam postos de trabalho, se não há mobilidade social, os crescimentos não são sustentáveis. Hoje está claro que o Consenso de Washington está morto e que está surgindo um mundo mais multipolar, que abre espaço para novas discussões.

Em que ponto está a discussão sobre o preço das commodities?

Há uma tentativa de que haja estoques de reserva para baixar os preços nos momentos de maior alta. Nós dizemos que, se há uma alta volatilidade de preços, isso não tem a ver com a economia real, mas sim com a especulação financeira. Aí, sim, estamos de acordo em trabalhar pela regulação de derivativos e fundos. De nenhuma forma pode-se apresenta, como desculpa para intervir no mercado de commodities, a fome, que já existia antes desta tendência. Podemos trabalhar em transferência tecnológica com os países pobres. As grandes economias fracassaram em colaborar com a criação de emprego nestes países, que é a única forma de erradicar a fome. É um argumento hipócrita das potências pedir que regulemos o preço das commodities para salvar os países pobres da fome.

Qual é sua opinião sobre o documento do FMI que voltou a falar sobre a inflação na Argentina?

Chama a atenção que se fale sobre os preços na Argentina como se esse fosse o principal problema que viemos tratar aqui. O problema é o déficit fiscal dos Estados Unidos, que este ano voltará a ser de 10% de sue PIB. O problema é sua forte taxa de emissão monetária. Há ainda os problemas da dívida de muitos países que até bem pouco tempo eram apontados como modelos. Hoje o problema da dívida no mundo é mais grave do que quando a região mais afetada era a América Latina. Seguirão aparecendo países que não poderão suportar seus passivos.

E com respeito à recomendação de baixar o gasto público na América Latina?

A discussão sobre se é preciso tirar o pé do acelerador esteve presente. A incorporação de mais e maiores consumidores na região não é totalmente benvinda no Norte. Eles pensam que isso eleva o preço das commodities. Querem que tenhamos menores taxas de crescimento. Essa é uma ideia que encontra eco em países como Chile, Colômbia e México. A ideia de utilizar recursos para criar fundos anticíclicos não tem sentido, porque os ativos que poupássemos perderiam valor no momento de uma crise. Nós dizemos que esse é o momento de acelerar mais, porque precisamos incluir a toda a sociedade. Quando falam de baixar o gasto, falam de ajuste. O que dizemos é que é importante diferenciar a qualidade do gasto público. E essa qualidade do gasto público é uma das bases do êxito do plano kirchnerista. Em 2002, o gasto em infraestrutura foi de 2 bilhões de pesos e este ano vamos superar a casa dos 60 bilhões de pesos. Isso é investimento para o crescimento. Por outro lado, um ajuste em nossos países não vai frear o preço das commodities, como afirma o documento do Fundo. E isso não vai permitir que solucionemos o que estamos solucionando. Estamos indo bem assim e não vamos mudar.

O governo argentino aceitará a volta das revisões periódicas exigidas pelo FMI aos seus membros em seu regulamento?

Algum dia voltaremos a cumprir o artigo quatro. A presidenta decidirá quando é o momento adequado. Mas nossa relação com o FMI sempre terá a ver com os aspectos técnicos. As decisões políticas são tomadas na Argentina. A fortaleza da presidenta para tomar decisões em momentos difíceis, quando todos diziam que era preciso seguir com a ortodoxia, demonstrou que temos que fazer aquilo que pensamento que é o melhor para o país. Ajudamos as empresas a manter os investimentos, os consumidores com planos de compra, mantivemos os controles aos capitais especulativos. Vemos muitos países que hoje estão mal por não seguir no caminho correto e outros que crescem e não geram emprego. Aqui o tema é que Washington tem uma burocracia de 50 anos que tenta manter sua influência para seguir vigente, depois que mostrou sua imperícia. Falam da fome na África de um modo muito cômodo desde a capital do império.

Já analisaram as recomendações do FMI para o novo índice de preços nacional?

O Indec (Instituto Nacional de Estatísticas e Censos) recebeu essas recomendações. Nesta semana já vamos trabalhar sobre o tema. Mas é importante ressaltar que se trata de um trabalho muito importante e que vai levar tempo. O índice nacional vai substituir o atual que só leva em conta a área metropolitana. Vai ser um trabalho de fundo, com intervenção das províncias para que surja um índice com um forte consenso. É preciso fazer um novo levantamento do gasto dos argentinos, que variou significativamente graças ao bom momento econômico que vive o país há sete anos. O índice servirá para o CER e para todos os contratos do país.

*Publicado originalmente no jornal Página/12. Versão em português, com tradução de Katarina Peixoto, pela Agência Carta Maior.