Comentário para o programa radiofônico do OI, 25/4/2011.
Apanhar um acontecimento aparentemente singular e isolado e investigar suas conexões com outros fatos para reapresentá-lo ao público devidamente contextualizado é uma das lições fundamentais do bom jornalismo. Foi isso que fez o Globo, ao publicar, no último fim de semana, a instigante reportagem sobre a agenda que revela as identidades dos terroristas que na década de 1980 tentaram desestabilizar o país e impedir o processo de redemocratização.
A partir de um fato isolado, uma entrevista do deputado coronel Jair Bolsonaro (PP-RJ) no qual ele destilava preconceitos contra negros e homossexuais, o leitor é conduzido, em poucos dias, ao ponto central de um dos episódios mais delicados da história brasileira recente.
Ações terroristas
Não se esclarece, no jornal, se a decisão de ir atrás de informações sobre o grupo de militares, policiais e empresários que planejou atentados contra a população para inculpar grupos de oposição e interromper o processo de abertura democrática teve origem na entrevista de Bolsonaro. Muito provavelmente, não. A reportagem foi certamente motivada pela proximidade dos 30 anos do atentado. Mas, para o leitor, fica evidente a conexão entre os dois fatos, tendo Bolsonaro como ligação entre eles.
A entrevista desastrada, que ainda pode custar ao deputado um processo por quebra de decoro parlamentar, fez alguns observadores lembrar que o parlamentar foi, também, um ativista frustrado do terrorismo militar, segundo confissão que ele mesmo fez à revista Veja em 1987 (ver, neste Observatório, “Capitão Bolsonaro, a história esquecida“).
O que há em comum entre os dois acontecimentos é o fato de que o Brasil não enterrou devidamente a ditadura militar.
Os debates sobre o direito das famílias de desaparecidos políticos de conhecerem a destinação de seus restos mortais têm esbarrado na incapacidade do Estado brasileiro de levar a fundo o esclarecimento de questões como o atentado do Riocentro, ocorrido em 1981, e outros episódios cuja investigação poderia levar aos nomes dos criminosos que torturaram e assassinaram opositores ao regime militar.
E que planejaram atentados terroristas que teriam vitimado muitos inocentes e produzido sequelas de consequências imprevisíveis.
Homenagem à democracia
A personagem patética do deputado coronel Jair Bolsonaro, com suas pregações extemporâneas, não é apenas mais uma figura folclórica no ambiente de circo em que às vezes se transforma a capital federal. Ele representa a presença entre nós, em pleno século 21, da mesma mentalidade retrógrada que alimentou e se beneficiou do poder militar imposto à política. Deveria indicar a necessidade de seguir adiante com a investigação e o julgamento de todos que usaram o manto do Estado para cometer crimes.
Os debates sobre o alcance da Lei da Anistia deveriam ser levados a sério e com profundidade, para que o Brasil pudesse enterrar de vez os mortos da ditadura e evitar o ressurgimento, aqui e ali, de fantasmas como o do sargento Rosário.
A reportagem publicada pelo Globo no domingo (24/4), com suíte na segunda-feira (25), revela parte do conteúdo de uma pequena agenda encontrada junto ao cadáver do sargento Guilherme Pereira do Rosário, que morreu no dia 30 de abril de 1981, quando explodiu em seu colo a bomba com a qual ele e o então capitão Wilson Dias Machado, hoje coronel da reserva, pretendiam provocar o atentado no Riocentro, onde milhares de cariocas se reuniam para assistir um show em comemoração ao Dia do Trabalhador.
Segundo o jornal, nos trechos da agenda que podem ser lidos estão identificados claramente os nomes de integrantes da rede de terroristas responsável pelo atentado.
Para não desmentir a vocação brasileira de varrer suas mazelas para debaixo do tapete, a primeira investigação sobre o acontecimento terminou em farsa, com os dois autores do ato terrorista sendo considerados vítimas.
Novas investigações, porém, acabaram por revelar a parte mais significativa da trama, mas o coronel Machado nunca foi punido. Acabou beneficiado por uma interpretação controversa da Lei da Anistia, ou pela covardia institucional que faz tremer certas figuras da República quando se trata de passar a limpo a História.
O jornalismo brasileiro deveria ter mais momentos como este, proporcionado pelo Globo.
No próximo fim de semana completam-se trinta anos do atentado que só não ocorreu por causa da trapalhada de seus autores. Se eles tivessem alcançado seu objetivo, muito possivelmente ainda estaríamos mergulhados na ditadura e a imprensa, amordaçada.
Esclarecer de vez quem manipulava o sargento e o capitão terroristas seria uma bela maneira de homenagear a democracia.
* Publicado originalmente no site do Observatório da Imprensa.