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A ajuda humanitária em um mundo sob fogo

Forças insurgentes limpam as armas que asseguram ter tomado do exército do Sudão. Foto: Jared Ferrie/IPS
Forças insurgentes limpam as armas que asseguram ter tomado do exército do Sudão. Foto: Jared Ferrie/IPS

 

Viena, Áustria, 16/3/2015 – Diante do crescente número de crises acontecendo simultaneamente no mundo, as organizações de ajuda humanitária, muitas das quais já alcançaram seu limite financeiro e logístico, necessitam com urgência de uma coordenação internacional.

“Sentimos que batemos contra o muro”, foram as palavras que a secretária-geral adjunta de Assuntos Humanitários e vice-coordenadora para a Ajuda de Emergências da Organização das Nações Unidas (ONU), Kyung-Wha Kang, empregou para descrever a situação.

Essa situação foi o tema do terceiro Congresso Humanitário de Viena, realizado no dia 6 deste mês na capital austríaca, com o lema A Ajuda Humanitária Sob Fogo. E a “ajuda humanitária não é um ato de caridade. É um direito humano”, afirmou Annelies Vilim, diretora da Responsabilidade Global, uma aliança de organizações austríacas de desenvolvimento e ajuda humanitária, na abertura do encontro.

Em um mundo com numerosas guerras e lugares em conflito, a questão de como realizar operações de ajuda que atendam as necessidades dos destinatários é cada vez mais relevante, enquanto milhões de pessoas necessitam dessa ajuda desesperadamente, ressaltou Vilim.

Entre outros, o objetivo do Congresso era tornar visível o trabalho humanitário e comprometer os que tomam as decisões, em todos os níveis, com a valorização da importância do mesmo e da cooperação. Lamentavelmente, o financiamento é escasso e faltam estruturas claras. Os atuais aportes insuficientes estão sob constante ameaça dos cortes orçamentários

Por exemplo, a Áustria, país anfitrião, não é uma exceção. Um estudo da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos demonstrou que o gasto estatal que Viena dedicou à ajuda humanitária foi de apenas US$ 1,40 por habitante em 2013, 20 vezes menos do que a quantia investida pela Suécia, país de riqueza semelhante.

“O mundo enfrenta transformações drásticas e a política não caminha junto”, queixou-se Yves Daccord, diretor-geral do Comitê Internacional da Cruz Vermelha.

O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, pôs em marcha uma iniciativa, gerida pelo Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, para realizar a primeira Cúpula Humanitária Mundial em maio de 2016, em Istambul, na Turquia. Governos, organizações humanitárias, pessoas afetadas pelas crises humanitárias e novos sócios, inclusive do setor privado, se reunirão nessa oportunidade para pensar soluções e fixar uma agenda para o futuro da ação humanitária.

Um tema que seguramente estará na agenda é a segurança do pessoal das organizações humanitárias. Como nas zonas afetadas pelos conflitos armados vivem 1,5 bilhão de pessoas, “lamentavelmente, tendemos a ver muitas histórias na imprensa sobre os trabalhadores humanitários mortos no cumprimento do dever, sobre atrocidades cometidas contra civis inocentes“, afirmou Kang.

Só em 2013, foram atacadas, feridas ou sequestradas 474 pessoas que realizavam trabalhos humanitários, e 155 perderam a vida. Devido a essas circunstâncias, Kang explicou que as organizações humanitárias estão repensando suas estratégias, especialmente na Síria e no Iraque, a fim de incluir no diálogo todas as partes interessadas e ter acesso às pessoas necessitadas.

No que se considera um passo controvertido, isso também implicaria que, pelo bem da população civil, aquelas partes consideradas “terroristas” também deveriam participar do diálogo. Os atores humanitários legitimam essa atitude na defesa dos princípios de humanidade, neutralidade, imparcialidade e não discriminação quanto aos beneficiários, e na independência.

Calcula-se que atualmente há mais de 30 conflitos armados em todo o mundo, 16 deles considerados guerras com mais de mil vítimas por ano. Para a ONU, as emergências mais graves se encontram na Síria, Iraque, Sudão do Sul e República Centro-Africana.

De fato, a situação na República Centro-Africana foi tratada no Congresso de Viena em um debate sobre o espaço humanitário e a vida e o trabalho durante a guerra. Dois dos líderes religiosos do país, o arcebispo Dieudonne Nzapalainga e o imã Layama Oumar Kobine, falaram sobre sua luta pela paz e o desarmamento.

Ambos argumentaram que a guerra civil em seu país não é de índole religiosa. “Nem a Bíblia nem o Corão afirmam que as pessoas devem se matar”, destacou Nzapalainga, e explicou que cinco dias depois do começo da crise, em dezembro de 2012, os líderes religiosos se reuniram para trabalhar coletivamente em uma plataforma inter-religiosa.

Segundo os religiosos, o problema é que 75% dos 4,6 milhões de habitantes do país africano são analfabetos e, portanto, vulneráveis à exploração e ao recrutamento por parte de grupos extremistas. Isso afeta os jovens em particular e,  como o Estado e o governo na República Centro-Africana já não funcionam, é o pessoal humanitário que frequentemente cumpre os deveres das autoridades.

Karoline Kleijer, coordenadora de emergências da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), descreveu as enormes dificuldades vividas pelos trabalhadores humanitários no país africano. Ela descreveu como, pouco depois de chegar à República Centro-Africana, em abril de 2014, grupos armados irromperam em uma reunião do pessoal do MSF e dirigentes da comunidade local na qual ela estava presente e abriram fogo matando 20 pessoas, entre elas três trabalhadores de sua organização.

O incidente teve enorme impacto na organização, mas, apesar de todas as dificuldades, “não nos impediu de trabalhar no país”, assegurou Kleijer. “Desde então, realizamos mais de dez mil operações e tratamos mais de 300 mil pessoas com malária. Ajudamos a nascer mais de 15 mil bebês e continuamos com as atividades até hoje”, destacou.

Embora o Convênio de Genebra de 1949 estabeleça o princípio de que a população civil deve ser protegida nos conflitos armados e nas guerras e que tem direito à assistência humanitária, os que realizam esse trabalho devem assumir grandes riscos para chegar às pessoas necessitadas e, além de sua neutralidade, estão se convertendo em objetivos bélicos.

“Esperamos que os trabalhadores humanitários continuem assumindo esses riscos, porque continuaremos assumindo-os, a fim de ajudar a população necessitada”, enfatizou Nzapalainga. Envolverde/IPS