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A batalha pelo passado de Jerusalém

O local de escavação de Givaty. Foto: Pierre Klochendler/IPS

 

Jerusalém, Israel, 15/8/2012 – “Este é o palácio do rei David”, afirma com segurança um guia de turismo israelense, ignorando a informação de um cartaz na entrada do sítio arqueológico, menos contundente a respeito. Abre a Bíblia e lê 2 Samuel 6:16: “Quando a Arca de Jeová chegava à cidade de David…”. “Tudo está de acordo com as descrições bíblicas”, disse maravilhado Amir Brightman, guarda de segurança israelense que acompanha os turistas. “Me sinto tão conectado…”, afirmou, após terminar este versículo do segundo Livro de Samuel.

O sítio bíblico da Cidade de David se localiza no coração do distrito palestino de Silwan, ao pé da amuralhada Cidade Velha de Jerusalém. Bem próximo fica o sítio de escavação arqueológica de Givaty. Nos últimos cinco anos, o antigo parque de estacionamento que havia ali foi dando lugar a um ambicioso projeto arqueológico israelense, que não se limita a Jerusalém e inclui escavações em outras partes do país.

Porém, o projeto é polêmico. Além de criticar o fato de a Bíblia ainda ser considerada o guia arqueológico por excelência, os palestinos insistem em afirmar que a intenção de Israel de trazer à luz a antiga Jerusalém é simplesmente reivindicar a herança judia da cidade. “Os visitantes chegam à Cidade de David sem mesmo se darem conta de que moramos aqui”, protestou Ahmad Qaraein, que vive em um prédio de três andares com vista panorâmica para o sítio de Givaty. Sua família reside no lugar há várias gerações.

Como muitos palestinos, Qaraein acredita que Israel escava em Jerusalém não tanto por interesse arqueológico, mas para reclamar o legado judeu da cidade. “Não foi só o rei David que viveu aqui. Ignoraram um cemitério islâmico de 1.200 anos encontrado na parte superior”, afirmou. A acusação é rechaçada pelo arqueólogo Doron Ben-Ami, da Autoridade de Antiguidades de Israel. “A arqueologia é uma profissão destrutiva. Se desmantela níveis para deixar a descoberto outros mais antigos. Além disso, não necessariamente todos os sítios proporcionam algo. Mas, como Jerusalém é um lugar sensível, decidimos preservar seções de cada período histórico”, explicou.

Ben-Ami supervisiona a escavação de Givaty. “Aqui começou Jerusalém, e aí se pode ver o último período (o muçulmano), sobre o período bizantino, o romano e os do segundo e primeiro templos” judeus, acrescentou. O arqueólogo mostra à IPS uma série de estruturas, mosaicos, colunas, muros e camada sobrepostas. “O período cananeu”, continuou explicando Ben-Ami, enquanto apontava para várias escavações, “milhares de anos antes do rei David, até a primeira Idade do Bronze. Quando aparece a rocha sólida, termina a arqueologia e começa a geologia. E a política também entra em cena”.

Há algo em que israelenses e palestinos concordam: a batalha pela soberania de Jerusalém é a pedra fundamental de seu conflito. Os palestinos querem que Jerusalém oriental se converta na capital de seu futuro Estado. “Esta casa fica na Palestina”, diz um grafite pintado perto do sítio de Givaty. “Silwan é nosso lar, e Jerusalém é nossa terra, nossa história”, destacou Qaraein. As 88 casas palestinas da área receberam ordens de demolição sob o argumento de estarem ilegalmente construídas, incluindo o prédio onde vive Qaraein. “Desde 1997 pagamos grandes multas anuais para adiar a demolição”, contou.

Os palestinos dizem que as autoridades israelenses concedem pouquíssimas autorizações de construção. “As pedras são mais importantes do que os seres vivos”, disse um triste Qaraein, acrescentando que as escavações arqueológicas afetam a estrutura de vários edifícios. Há três anos uma escola desmoronou parcialmente, ferindo 17 estudantes. Os moradores responsabilizaram por esse desastre os túneis arqueológicos que atravessam Silwan.

A zona de escavação de Givaty está cheia de atividade. Estudantes de arqueologia e voluntários cavam e retiram o pó, fazem cadeias com baldes para transportar terra ou artefatos antigos encontrados, que informam sobre uma longa história de conquistas e reconquistas, de “guerras santas” e cruzadas. Nos últimos dois mil anos Jerusalém foi capturada 13 vezes. Para Qaraein, existe apenas uma potência ocupante. Os turcos, os britânicos e os jordanianos, todos partiram e nós ficamos. Israel também irá”, previu. “Vivemos sob ocupação israelense desde 1967. E desde 1991 até hoje vivemos uma segunda ocupação, a dos colonos” judeus, ressaltou.

O sítio é administrado pela Elad, uma associação israelense ultradireitista dedicada a financiar escavações em lugares de valor histórico para os judeus, bem como a construção de colônias em Jerusalém oriental. Cerca de 400 colonos vivem no local, em meio a cinco mil palestinos, e por isso a tensão é grande. Qaraein foi baleado duas vezes na perna por um colono que ainda é seu vizinho. “A Elad é um estado dentro do Estado. Assume todos os direitos e ninguém a detém”, destacou. Ele é categórico. As escavações na Cidade de David são parte de um plano para expulsar os palestinos de Jerusalém. “Não nos querem”, lamentou Qaraein.

“Estamos no centro de um conflito político”, disse Yonatan Mizrahi, que organiza visitas turísticas guiadas. “Como devemos chamar o lugar, Cidade de David ou Silwan?”, pergunta. Mizrahi, arqueólogo e ativista da organização não governamental Emek Shaveh, dedicada a explorar “o papel da arqueologia no conflito palestino-israelense”, afirma que essa disciplina está sendo usada pelo Estado judeu “para justificar e legitimizar o controle de Israel sobre Jerusalém oriental, inclusive em um futuro acordo. Se os arqueólogos colocarem um cartaz dizendo ‘bem-vindos ao palácio do rei David’, isto permitirá aos israelenses afirmar que Jerusalém oriental lhes pertence por história”, pontuou.

“A arqueologia revela civilizações e mudanças de civilizações. Como pode este sítio pertencer exclusivamente a uma nação? Entre o passado e o presente, o que é mais importante? Camadas arqueológicas do Século 7 antes de Cristo ou os povos de hoje?”, questionou Mizrachi. “Jerusalém não é apenas judia. Por outro lado, tampouco se pode negar que Jerusalém nunca foi judia. Este é o dilema”, indicou.

No entanto, o arqueólogo Ben-Ami insiste que seu trabalho é imparcial e não tem motivos políticos. “Vejo o sítio como algo puramente profissional. Sejam estruturas grandes ou pequenas, de períodos muito antigos ou mais próximos de nós, respeito tudo o que encontro”, afirmou. Entre a arqueologia e a política, entre o passado e o presente, tanto israelenses quanto palestinos sabem muito bem que as antigas batalhas por Jerusalém têm muito valor hoje. Envolverde/IPS