Montevidéu, Uruguai, 19/8/2013 – “Aborto legal, seguro e gratuito”, exclamou, quase em um grito, o chanceler do Uruguai, Luis Almagro, na cerimônia inaugural da conferência latino-americana sobre população e desenvolvimento. Uma parte do público presente, delegações de 38 países e de organizações da sociedade civil, aplaudiu e deu vivas.
A afirmação, insolitamente emitida pelo ministro das Relações Exteriores, coincide com a cobrança trazida a Montevidéu pelas 50 redes reunidas na Articulação Regional de Organizações da Sociedade Civil da América Latina e do Caribe para Cairo+20. No entanto, não estava na agenda do que se propunha a conseguir o país anfitrião, Uruguai, tal como disse à IPS o subsecretário de Saúde Pública Leonel Briozzo, que presidiu a I Reunião da Conferência Regional sobre População e Desenvolvimento da América Latina e do Caribe, encerrada no dia 15.
O que pretendia o Uruguai, que teve um importante papel facilitador do Consenso de Montevidéu sobre População e Desenvolvimento, era incluir nesse documento a recomendação de proporcionar “atenção integral diante da gravidez não desejada e não aceita, e, também, a atenção integral depois do aborto, quando necessária, com base na estratégia de redução de risco e danos”.
Essa estratégia foi concebida por Briozzo e outros profissionais de diferentes disciplinas, reunidos na organização Iniciativas Sanitárias, e aplicada desde 2002 no hospital Pereira Rossell, a principal maternidade do país, que atende a população mais vulnerável e onde trabalhava e era professor o agora vice-ministro. Na época, os abortos causavam neste país 28% das mortes maternas.
Em 2004, o Ministério da Saúde a adotou como política nacional e hoje a mortalidade materna por aborto está praticamente erradicada. No ano passado, a Organização Pan-Americana da Saúde a selecionou com melhor pratica regional e a recomendou para países com legislação restritiva ao aborto provocado. Assim, em 2012 o Uruguai legalizou o aborto
Além das óbvias resistências que teriam apresentado vários governos a uma declaração pedindo a legalização da interrupção voluntária da gravidez, Briozzo disse que a maioria dos países da região contempla algumas circunstâncias para autorizar a interrupção da gravidez. Entretanto, destacou que um problema é que mesmo nesses casos persistem múltiplos obstáculos para implantar esses serviços. Por isso a estratégia de Montevidéu foi focar a artilharia contra o aborto “inseguro”.
Mas, a Articulação recordou que esta “continua sendo a região com maior criminalização do aborto no mundo”, pois sete países (Chile, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Haiti, Suriname e República Dominicana) o “proíbem de maneira absoluta”. Assim, uma e outra vez, mulheres, adolescentes e até meninas são obrigadas a continuar com gravidez resultante de uma violação, o que coloca em risco sua saúde ou sua vida.
Em sua intervenção no plenário, no dia 13, a ativista nicaraguense Dorotea Wilson perguntou aos delegados: “A tolerância com os Estados que abertamente vulneram os direitos das mulheres e violam os compromissos adquiridos, como impedir?”. “O que fazer com governantes que em lugar de defender a vigência do Estado laico e de recomendações e chamados à ação emanados destas conferências obedecem a lobbies e poderes antidireitos?”.
Este ano o sistema interamericano de direitos humanos teve que intervir para que as autoridades de El Salvador permitissem tardiamente o aborto em uma jovem com graves enfermidades e que também estava gestando um feto com anencefalia. “Beatriz” sobreviveu, mas ficou com sequelas. Na República Dominicana, “Esperancita”, de 16 anos, morreu no ano passado porque as autoridades sanitárias se negaram a aplicar-lhe quimioterapia para tratar sua leucemia, pois poderia provocar-lhe um aborto.
Das mortes maternas, 11% se devem a abortos inseguros e um milhão de mulheres devem ser hospitalizadas anualmente por complicações do aborto na América Latina e no Caribe. A penalização afeta as mais pobres. É certo que, se melhorar a educação sexual e o acesso à informação e a métodos anticoncepcionais, os abortos poderão diminuir. Mas a decisão de interromper uma gravidez pode ter origem em outras chagas desta região, como a violência sexual.
Este mês, a ministra de Políticas para as Mulheres do Brasil, Eleonora Menicucci, afirmou que nesse país, de 198 milhões de habitantes, uma mulher é violada a cada 12 segundos. Se a estimativa estiver correta, são mais de cinco milhões de violações sexuais por ano.
Assim, o Consenso de Montevidéu traz avanços, não tão audazes como o da proposta inicial, mas, avanços. Em seus princípios gerais os governos reafirmam “que a laicidade do Estado também é fundamental para garantir o exercício pleno dos direitos humanos, o aprofundamento da democracia e a eliminação da discriminação contra as pessoas”. Em seu parágrafo 42 afirma que os governos acordam “exortar os Estados a considerarem a possibilidade de modificar leis, normativas, estratégias e políticas públicas sobre a interrupção voluntária da gravidez para salvaguardar a vida e a saúde de mulheres e adolescentes, melhorando sua qualidade de vida e reduzindo o número de abortos”.
Isto é um “avanço histórico”, disseram as ativistas da Articulação, porque os países “reconhecem pela primeira vez em um documento regional que a realidade os obriga a repensar suas leis e normas, considerando as demandas das mulheres”. Houve comemoração entre os mais de 800 participantes da conferência de Montevidéu. Agora, é uma questão de cumprir o que foi decidido. Envolverde/IPS