Para salvar o planeta, é preciso questionar a concentração de riqueza e poder. Mas há quem prefira marketing do “green business”.
[media-credit name=”Henrique Monteiro ” align=”alignright” width=”400″][/media-credit]Em junho de 2012, o Rio de Janeiro sediará a Conferência Rio+20, em um momento de encruzilhada para a humanidade. Vinte anos depois, a conferência pretende fazer um balanço dos compromissos estabelecidos na Rio 92, definir parâmetros para a chamada economia verde e debater a arquitetura institucional necessária para o desenvolvimento sustentável. Já é ampla a mobilização global, nacional e local para a Rio+20. Porém, corremos o risco de, mais uma vez, assistirmos a uma maciça mobilização social nas ruas e a uma conferência oficial com grandes repercussões na mídia – mas sem consequências práticas nem acordos substantivos e vinculantes que possam encaminhar soluções à altura da crise vivida pela humanidade e pelo planeta.
Existe o risco de um resultado vazio ou que legitime propostas de “mais do mesmo”: mais falta de vontade política, mais desregulação, mais soluções paliativas para adiar os problemas de fundo. Tem sido assim desde a Rio 92, passando por todo o ciclo de conferências da ONU nos anos 1990, e de forma tão clara nas sucessivas COPs, apesar das mobilizações intensas dos movimentos sociais visando a sensibilizar a opinião pública e pressionar os governos.
Não é de hoje que os atores hegemônicos são vitoriosos na manutenção dos padrões vigentes de exploração da natureza e do trabalho. Desde 1972, quando o então Clube de Roma apontou os “limites do crescimento”, governos e corporações passaram a acomodar sua busca de lucros e expansão crescentes àquele novo contexto. Em 1987, o Relatório Brundtland lançou seu documento “Nosso Futuro Comum”, onde aprofundou a discussão sobre o limite à utilização dos recursos naturais. Tanto o Clube de Roma como o Relatório Brundtland contribuíram para colocar na agenda global o tema dos limites do crescimento e da necessidade de uma administração mais eficaz do modelo, que levasse em conta a finitude e o escasseamento dos recursos naturais. Porém, sem a necessária ênfase nas disparidades no acesso e apropriação de tais recursos, nem nos conflitos e disputas daí decorrentes.
A Rio 92 buscou consolidar aquele novo contexto sob a forma de uma ampla legitimação da ideia do desenvolvimento sustentável. O consenso dominante era buscar uma acomodação do ideário desenvolvimentista, aliado a medidas de gerenciamento ambiental. Sendo um conceito em disputa, em nome do desenvolvimento sustentável governos adotaram compromissos insuficientes; corporações passaram a adotar o “marketing verde”; organizações e movimentos sociais tiveram níveis distintos de apropriação, deparando-se com visões que incluem desde o desenvolvimentismo liderado pelo Estado até as tentativas de encaminhar soluções privatistas de administração da crise do modelo em curso.
Um dos sintomas desta disputa de sentido e, ao mesmo tempo, de esvaziamento da proposta de um desenvolvimento sustentável, são as negociações sobre mudanças climáticas. O mundo assiste à falta de vontade política dos governos de fazerem a transição de seus modelos de produção de altas para baixas emissões de gases do efeito estufa e, ao mesmo tempo, o avanço das propostas de mercado de carbono e outras falsas soluções.
Em meio a esta trajetória de frágeis compromissos, o planeta e a humanidade dão claros sinais da urgência de soluções reais. A Rio+20 pode e deve ser um marco no sentido da construção de uma nova vontade política, do reconhecimento da obsolescência dos arranjos políticos e institucionais vigentes – que visam a dar sobrevida a um sistema em crise de legitimidade e que está pondo em sério risco a vida no planeta. No entanto, é preocupante que dois temas centrais da agenda oficial da Rio+20 (economia verde e arquitetura institucional) corram o risco de serem pautados pelos interesses das corporações e não pelos direitos dos povos.
No caso da economia verde, circulam propostas sobre um Green New Deal. Fala-se em aumentar a riqueza com redução dos riscos ambientais. Em impulsionar novas formas de crescimento com ecoeficiência e novas tecnologias, orientando os fluxos de capital para setores de baixo carbono. Em como – ao invés de se reduzirem os fluxos financeiros e do comércio global – se poderia levar tais fluxos aos setores verdes, abrindo novos nichos de crescimento e de mercados. Em como fazer melhores condicionalidades ambientais e gerar empregos nos setores verdes, apostando-se em novas formas de crescimento.
Sendo o trabalho uma dimensão central da sociedade, é crucial que se faça uma transição justa rumo a uma participação crescente dos empregos verdes no mundo do trabalho. É preciso, porém, que o significado de emprego verde seja prioritariamente relacionado ao trabalho decente, a direitos assegurados, a salários e condições dignas. Apostar na alocação de empregos em setores de baixa emissão de carbono, porém com condições degradantes de trabalho, seria mais uma falsa solução. Além disso, até agora o debate sobre economia verde tem ressaltado a perspectiva de erradicação da pobreza, sem colocar ênfase no necessário enfrentamento das desigualdades, no combate à concentração de riqueza, na urgência da redistribuição da renda e do acesso a recursos. O mundo precisa menos de produção de riquezas e mais de sua distribuição.
Tem sido desconsiderada do debate dominante uma série de experiências inovadoras, que emergem de novos sistemas de produção. Elas questionam a lógica da acumulação e o crescimento infinito dos fluxos globais de investimentos e comércio. Propõem o encurtamento de circuitos entre produção e consumo. Fortalecem os direitos dos grupos sociais e econômicos não hegemônicos.
É preciso perguntar por que continuam a ser menosprezados sistemas de produção como a agroecologia, a economia solidária, os sistemas agroflorestais das populações tradicionais em seus territórios, as tecnologias sociais que visam à socialização e apropriação coletiva do conhecimento, contribuindo para a ideia de bens comuns. Tais inovações já comprovaram que são capazes de produzir sem emitir carbono; que fortalecem direitos, reduzem desigualdades e alimentam a população sem envenená-la; que são verdadeiramente sustentáveis política, econômica, social, ambiental e culturalmente.
Não é difícil encontrar as respostas. Tenta-se minimizar a riqueza de tais alternativas não por motivos técnicos, mas políticos: estes sistemas e seus atores não são hegemônicos. Sua produção e disseminação ocorrem combinadas com a resistência ao modelo dominante, e o confronto entre estes modelos antagônicos resulta em conflitos inconciliáveis em inúmeros territórios ao redor do mundo. É preciso, portanto, acumular forças na base da sociedade, na política, na opinião pública, nas instituições acadêmicas e científicas para que possamos ver estes novos sistemas de produção e consumo ganharem corações e mentes.
Os movimentos globais foram capazes de fazer isto com Seattle, a campanha contra a Alca e o Fórum Social Mundial, ao disputarem a opinião pública contra o neoliberalismo. Agindo assim, contribuíram decisivamente para a deslegitimação e quebra do pensamento único e para a inauguração de um novo ciclo político na América Latina. O que está em jogo na Rio+20 é: teremos força política para alavancar uma iniciativa que questione mais profundamente as próprias bases fundantes do modelo vigente? Seremos capazes de elevar o patamar das experiências destes novos sistemas de produção à altura de uma disputa contra-hegemônica?
Outro tema central da Rio+20 – arquitetura institucional – deveria partir do diagnóstico sobre a crise de legitimidade vivida pelo sistema internacional e de suas instituições. De um lado, uma ONU sem poder de implementação de suas resoluções. De outro, com poder de sanção, instituições criadas no pós-Segunda Guerra, como FMI, OMC e Banco Mundial, refletindo o concerto de poder então vigente. Estas últimas tentam produzir diretrizes para um sistema internacional em clara crise de hegemonia e em transição para múltiplos centros de poder, após ter passado por um longo período bipolar e por um brevíssimo momento unipolar expresso pelo “fim da História”. Sem condições políticas de gerir o sistema global por meio destas instituições com agendas obsoletas e processos decisórios complexos, os governos que concentram poder econômico organizam-se em coalizões informais e autoconvocadas como o G20. Por meio delas, emitem resoluções que afetarão os povos do mundo todo.
É crucial portanto a luta por uma real democratização do sistema internacional, e isto requer muito mais do que a mera inclusão dos chamados países emergentes no fechado processo decisório. É preciso reconhecer a necessidade de uma nova institucionalidade, que expresse democraticamente os novos interesses, agendas, atores – inclusive os não Estatais –, conflitos, contradições e correlação de forças do mundo de hoje. É claro que não se trata apenas da governança ambiental, e sim do conjunto dos arranjos institucionais nas áreas financeira, econômica, social e ambiental, que devem ser repensadas em conjunto, visando a desprivatizar os processos decisórios, afastá-los dos interesses das corporações e aproximá-lo dos interesses e direitos dos povos.
Enquanto do lado dos governos ainda é incerto o peso a ser dado à Rio+20, do lado das organizações e movimentos sociais pretendemos realizar uma iniciativa que seja capaz de convocar amplamente a sociedade para debater e se engajar nas lutas por direitos e justiça socioambiental, pressionando os governos a assumirem amplos compromissos – ao invés de delegarem aos mercados e à esfera privada a dianteira da administração de um mundo em crise.
A equação vivida há mais de um século combina superexploração da natureza e do trabalho em nome do infinito crescimento econômico e desenvolvimento das forças produtivas. Ela já nos conduziu às catástrofes ambientais, climáticas e sociais de hoje. Chegamos a uma clara situação onde as soluções adotadas pelos governos e corporações que visam a manter o status quo fracassaram.
É hora de olharmos para o núcleo do problema: os padrões vigentes de exploração, acumulação, produção e consumo são incompatíveis com a sobrevivência da vida no planeta. E para enfrentar este núcleo, as ideias predominantes – seja pelo viés desenvolvimentista, seja pelas soluções na via privatista do green business – deixam do lado de fora atores, visões e projetos que hoje resistem, disputam e apresentam alternativas reais ao modelo dominante. Os desafios com que nos deparamos só serão enfrentados se colocarmos os direitos e a justiça no centro da agenda. E para tal, é preciso apostar na constituição de uma esfera pública, tanto na política como na economia, destinada a garantir os direitos dos povos.
* Fátima Mello é diretora da Fase – Solidariedade e Educação. Integra a Coordenação Geral da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) e foi uma das facilitadoras das cinco primeiras edições (2001-2005) do Fórum Social Mundial.
** Publicado originalmente no site Outras Palavras.