A Constituição Federal de 1988, promulgada em 5 de outubro de 1988, não é perfeita, longe disso. Mas olhando para trás, é incrível como os legisladores conseguiram que o respeito aos direitos humanos estivesse no texto final. Não temos sido competentes para por em prática muita coisa que está lá dentro, seja pela falta de regulamentação, seja pelo não cumprimento da letra escrita. Mas, aí, já é outra história.
Nas últimas semanas, estive em alguns eventos no Congresso Nacional, entre comissões, reuniões e afins, que me deram paúra no estômago. Nobres parlamentares defendendo uma revisão profunda da Constituição para a remoção de determinados entraves que impedem o desenvolvimento desta nação. Leia-se “entraves” como instrumentos que proteger minorias, por exemplo.
Não sei se é ignorância ou má fé de quem tem aspirações políticas maiores e quer surfar com a falta de informação alheia, mas alguns pontos questionados são cláusulas pétreas de nossa Carta Magna e não podem ser mudados nem que a vaca tussa. A questão dos direitos fundamentais, por exemplo – em que se inserem, a liberdade, a dignidade e a função social da propriedade.
(Não preciso nem falar da questão de trabalho escravo, que já virou figurinha repetida. Se fosse taguear a boca de alguns deputados, as palavras seriam “escravo – mudança – urgente – snif”.)
Muitos setores querem retalhar a Constituição ao seu interesse. E alguns fazem disso no dia-a-dia. Nos últimos anos, com a diminuição de sua autonomia real frente ao Poder Executivo, o cerne da atividade parlamentar foi migrando para o ato de fazer emendas à Constituição. Matérias infraconstitucionais estão sendo alocadas dentro da Carta Magna a torto e direito.
As discussões mais amplas envolvendo o assunto versam a respeito de alterar a representação política e o processo eleitoral, incluindo aí seu financiamento. Ou o sistema tributário brasileiro, com a desoneração de algumas áreas. Na esteira desses debates, insere-se outros. Lobistas que falam – em off, básico – por representantes do patronato cutucam daqui e dali para mudanças diminuindo direitos trabalhistas. Outros lobistas pressionam pela revisão na área fundiária, reforçando a necessidade de se garantir o direito de propriedade mesmo sem função social.
Do outro lado, grupos, organizações, movimentos, sindicatos tentando manter direitos ou tirá-los do papel. Noves fora, grupos religiosos que querem transformar a proibição ao aborto ou à eutanásia impossíveis de serem quebradas por interpretação do Supremo Tribunal Federal – o que é bem possível que aconteça mais cedo ou mais tarde.
A Constituição de 1988 foi um compromisso de equilíbrio, um pacto político que criou regras de convivência entre grupos e classes sociais. O discurso de uma nova Assembléia Constituinte significa repactuar a sociedade. Então, para mudar isso de forma profunda, só rompendo a ordem institucional, através de uma revolução/golpe de Estado. Não acho que é isso que esses proponentes de mudanças querem.
A própria Constituição em seu artigo 60 restringe o que pode ser mudado para não diminuir as conquistas e os direitos adquiridos que hoje viraram pontos de pauta nos corredores de Brasília.
Mesmo as decisões de uma Constituinte reduzida, eleita com a tarefa de atuar em reformas política e tributária, teriam que, provavelmente, passar novamente pelos deputados e senadores do Congresso, que reabririam a discussão. Em outras palavras: dã. Como me explicou um jurista de atuação nacional e grande discrição: ou se faz uma revolução para mudar tudo ou esquece. No atual contexto, e por mais profunda que seja sua crise de legitimidade, ninguém foge da democracia representativa. Nem a extrema esquerda, nem a extrema direita.
Por mais que ela tenha virado uma colcha de retalhos, segue sendo de vanguarda em um país que, nem de longe, e apesar das conquistas, conseguiu efetivar seus direitos fundamentais. Apesar de completar hoje 23 anos, ela continua uma adolescente, não tendo mostrado ainda todo o seu potencial. Esperamos que isso mude em breve.
* Publicado originalmente no Blog do Sakamoto.