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Desde os 8 anos em cena, Selton Mello redescobre ao dirigir filmes a certeza da vocação. Por Orlando Margarido, de Paulínia.
Benjamim, como todo herdeiro de família circense, é um predestinado. Assume-se todas as noites na fantasia do palhaço Pangaré, mas o riso começa a desbotar. As agruras da vida mambembe, precária, de resultado incerto, pesam tanto quanto o idealismo do pai Valdemar, líder da trupe e seu companheiro cômico em cena, como Puro Sangue. Entre as afinidades compartilhadas pelo jovem personagem interpretado por Selton Mello em O Palhaço, filme que dirigiu, e pelo próprio ator, certamente não estão a crise de identidade e a dúvida profissional.

Aos 38 anos, 30 deles de carreira, Selton nunca titubeou na escolha feita na infância com o apoio da mãe e dona de casa Selva e o pai bancário Dalton, a quem o ator deve seu nome, numa junção típica das famílias brasileiras. Se tanto, viveu conflitos sobre quais experiências seguir no bojo da profissão, iniciada de maneira tão precoce. O Palhaço sintetiza o dilema de Selton, prestigiado intérprete de televisão, teatro e cinema, que decidiu se arriscar atrás das câmeras.

A direção surgiu cautelosamente para ele. Em 2006, resolveu contar história no curta-metragem Quando o Tempo Cair. Dois anos depois, pretendeu deixar sua marca autoral no longa-metragem Feliz Natal e agora alcançou a afirmação equilibrada e elogiada. Não faltou mesmo o reconhecimento de uma importante vitrine como o Paulínia Festival de Cinema, que conferiu ao realizador o prêmio de melhor direção e roteiro, este em parceria com Marcelo Vindicatto, seu colaborador frequente.

Significativo para um ator que deseja experimentar e se encontrar na direção, passagem nem sempre modelar no Brasil, O Palhaço é uma confluência de raízes e interesses de Selton, ainda que ele relativize o contexto. “Não fui ao circo para falar de mim, da minha terra, da minha formação. Apenas achei a linguagem mais apropriada para chegar ao grande público”, diz a CartaCapital no dia seguinte a uma exibição em Paulínia, durante a qual a intenção do diretor de se tornar acessível se realizou no limite do tumulto. Seu rosto, melancólico como Benjamim ou disfarçado de Pangaré, colaborou para subir o milhar de espectadores naquela ocasião. A prova de Paulínia fez crescer as expectativas de público a partir de 28 de outubro, quando o filme chega aos cinemas brasileiros em circuito comercial.

Não se trata, contudo, de uma película com expectativa popular apenas, antes de um bom filme, que faz entrosar de maneira feliz o universo de referências pessoais de seu diretor com o talento de seus ótimos colaboradores, seja em cena, como Paulo José na figura do pai, seja fora dela, no figurino de Kika Lopes, outro troféu em Paulínia.

Nenhum desses feitos, contudo, explica mais os alicerces do filme do que a presença de coadjuvantes de um humor antigo ao público, mas recorrente a Selton. As figuras de Jorge Loredo, o Zé Bonitinho, protagonista do curta-metragem anterior, de Ferrugem e de Moacyr Franco, este numa estreia no cinema presenteada com o prêmio de ator coadjuvante, povoaram a infância e a adolescência do diretor quando se sentava diante da tevê com o pai. Ainda que seu Benjamim seja referência direta ao palhaço negro Benjamim de Oliveira (1870-1954) e a lista de profissionais admirados cresça para Jacques Tati, Peter Sellers, Carlo Collodi e seu Pinóquio, Federico Fellini, e até o pintor Marc Chagall, nada parece superar a convivência com o genuíno e ingênuo riso de Renato Aragão e outros Trapalhões. “A infância guarda todos os segredos da vida”, Selton filosofa.

Se é assim, a sua levada em Minas Gerais, na pequena Passos natal, homenageada no filme, e em outras cidades do Estado, devido a transferências do pai no banco, guardava um segredo de polichinelo. “Eu descobri logo cedo que era aquilo, a vida artística vista na tevê, o que eu queria, e na família todos me apontavam o jeito para a coisa. Daí a confirmar a vocação era outro passo, no qual entrou a generosidade de meus pais.” Ao mesmo tempo que buscava atuar, desenvolvia outra habilidade com a música, tocando instrumentos e participando de programas de calouros infantis. Seu repertório preferido ainda é Roberto Carlos. Em razão desses planos, o clã, então, transferiu-se primeiro para São Paulo, onde Selton ganhou papel iniciante aos oito anos na novela Dona Santa, da TV Bandeirantes, e depois para o Rio de Janeiro. A mudança também possibilitaria ao caçula Danton Mello sua vez na precoce carreira de ator.

Antes de ser seduzido para a teledramaturgia global, com destaque a partir do folhetim Corpo a Corpo (1984), Selton faria sua breve formação profissional no Tablado de Maria Clara Machado, celeiro habitual de novatos, e dali seguiria de modo instintivo. “Considero-me um autodidata, tive a sorte de conviver com gente como Cláudio Correia e Castro, Lima Duarte e Marco Nanini.”  Mas na razão de uma novela ao ano, além de especiais, durante mais de uma década, Selton chegou a um esgotamento com o formato e viu-se em um daqueles pontos de conflito cruciais. “A televisão, pelo pouco tempo de preparação, é um aprendizado a fórceps, e eu já havia tido uma ótima escola com Paulo Ubiratan, Marcos Paulo ou Luiz Fernando Carvalho”, lembra, referindo-se a diretores com quem trabalhou. Reconhecia-se um privilegiado, mas queria sair da comodidade da esfera da teledramaturgia para assumir riscos.

O marco da virada coincidiu com o formato da minissérie vinculado a uma nova pesquisa de linguagem e, em 1999, Selton protagonizou O Auto da Compadecida. O projeto de Guel Arraes estenderia no ano seguinte o sucesso da televisão para o cinema, com mesmo elenco, e consolidaria o apelo cativante do ator também no veículo, no qual atuava com regularidade.

A essa altura, certa personalidade cômica do ator havia se evidenciado e se impunha como um registro indelével que parece ironizado com Benjamim, um clown triste, dramático em sua inapetência para a vida real. “Apesar de constituir uma ideia comum, é preciso lembrar ser mais difícil fazer bom humor. Ele não é valorizado. O drama tem mais reconhecimento e, nisso, creio que acabei por ficar carimbado como um profissional do cômico.”

Um dos que não enxergaram limitação no ator foi Luiz Fernando Carvalho, seu conhecido de novelas e considerado por Selton o profissional mais influente na sua carreira, ao lado de Guel Arraes. Carvalho lhe impingiu, pois irrecusável, o desafio do filho rebelde e atormentado de Lavoura Arcaica, corajosa adaptação do romance de Raduan Nassar para o cinema.

A partir do projeto, em que contracena com Raul Cortez e Juliana Carneiro da Cunha, Selton parece ter recebido o passe definitivo como ator não só talhado também para o drama, como para qualquer outro perfil. Seus personagens pertencem à linha tênue entre o cômico e o dramático. Eles flertam com o surreal e o humor negro, a exemplo do dono da loja de compra e venda de objetos usados em O Cheiro do Ralo (2007), produção com a qual colaborou no capital.

Aquele é um período no qual sua persona artística se multiplica. Na tela assina clipes musicais, como do grupo Ira!, e apresenta o programa de entrevistas Tarja Preta, em que denota sua irreverência, com um humor irônico. No teatro, produz peças como O Zelador, de Harold Pinter, na qual também atua. A versatilidade e o excesso de compromissos apresentam, porém, sua fatura, e em 2008 o ator passa por um processo de depressão, em função de ter abandonado medicamentos para emagrecer. E ressalva que, se chegou a pensar em abandonar tudo, é porque estava sob efeito da droga. Por isso fez questão de tornar pública a situação, receoso de que pudessem confundir seu sobrepeso como recurso físico para interpretar o protagonista de Jean Charles.

O filme de Henrique Goldman sobre o brasileiro assassinado no metrô de Londres fez Selton reencontrar o eixo do trabalho e encaminhar definitivamente o projeto de se tornar diretor. Deu um susto, reconhece, em seu público com o tom sombrio de Feliz Natal, sobre uma família desestruturada vista pelo filho que regressa à véspera da festa. O tema, claro, é revelador de experiências anteriores significativas para o ator. Além disso, o elenco antecipava seu interesse em cutucar uma memória esquecida da cena artística nacional, no resgate de nomes como o da ex-vedete e musa dos anos 1970 Darlene Glória e do comediante Lúcio Mauro. “Fiz o filme como uma afirmação de que a vida é dura também. Eu estava precisando caminhar para algo assim, mas não como ator.”

A euforia demonstrada por ver seu empenho na segunda direção saudado em Paulínia reflete a tranquilidade conquistada. Aquela que permite a Selton transitar com desenvoltura entre veículos como televisão e cinema, por vezes somando ambos como no sucesso atual A Mulher Invisível, numa variedade de registros e papéis, sem mais o ônus da comprovação. Pode, assim, ser um homem traído fadado a alucinações e fantasias ou o romântico que se deixa levar por um amor à primeira vista, mas não mais pela magia da arte, descrença que muito dificilmente o ator, um dia, virá a compartilhar.

* Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.