“A Cracolândia muito além do crack”: profissionais debaterão ação deflagrada em São Paulo

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Atualizado em 26/04/2012 às 09:04, por Ana Maria.

Marcelo da Silveira Campos.

Profissionais da área acadêmica, da saúde e do direito realizam, de 28 a 30 de maio, na Faculdade de Saúde Pública da USP, em São Paulo (SP), o seminário A Cracolândia muito além do crack, a respeito das implicações e das consequências da Operação Centro Legal da Polícia Militar, deflagrada no dia 3 de janeiro, início desse ano, na região conhecida como Cracolândia, localizada no centro da cidade de São Paulo, que teve – segundo o governo – como objetivo acabar com o problema que já existia há cerca de 20 anos no local: o consumo e a venda de crack.

Como o próprio nome sugere, o evento quer propor uma discussão mais aprofundada sobre o tema, como a atenção do Estado aos/as usuários/as de drogas no país, questões sociais que estão enraizadas no problema, criminalização social, saúde pública, entre outros, que foram claramente desprezados no episódio e que para várias organizações merecem questionamentos e posicionamentos mais próximos da realidade brasileira.

O Seminário contará com mesas temáticas e uma mesa plenária, reunindo grupos de trabalho na presença de expositores e mediadores para debater os seguintes assuntos: Políticas públicas de atenção ao grupo de drogas; Segurança pública e insegurança social; Economia e Direito: quem ganha e quem perde? e Avaliação da Operação na Cracolândia: interesse em disputa.

Um dos participantes do evento é Marcelo da Silveira Campos, doutorando e pesquisador da USP, com o tema de doutorado desenvolvido no Impacto da Lei de Drogas no Sistema de Justiça em São Paulo e sociólogo do Projeto Justiça Criminal e da Pastoral Carcerária Nacional.

Em entrevista à Adital, ele falou sobre alguns pontos que, com certeza, serão pautados no Seminário. “A política em relação ao consumo de drogas no Brasil tem priorizado o aspecto da criminalização, da prisão de usuários que, inclusive, não está estabelecida na Nova Lei de Drogas em detrimento de políticas sociais, sobretudo políticas de saúde e de redução de danos para o usuário”, afirmou.

O seminário A Cracolândia muito além do crack é aberto a todos/as que tenham interesse no tema.

Veja a programação completa.

Adital – Como se avaliam as políticas públicas de atenção ao usuário de drogas no país?

Marcelo da Silveira Campos – A primeira constatação que algumas pesquisas importantes vêm mostrando se refere à questão da indistinção, da confusão que tem havido entre o usuário e traficante. Creio que este é o primeiro ponto para nós pensarmos essa questão. Essa confusão tem trazido, sobretudo, como efeito da Nova Lei de Drogas, a lei 11.343, o encarceramento em massa de usuários e pequenos traficantes.

Desse ponto de vista, a política em relação ao consumo de drogas no Brasil tem priorizado o aspecto da criminalização, da prisão de usuários que, inclusive, não está estabelecida na Nova Lei de Drogas em detrimento de políticas sociais, sobretudo políticas de saúde e de redução de danos para o usuário.

Adital – Há campanhas de sensibilização e prevenção ao uso de drogas e, especificamente, para o crack?

Marcelo da Silveira Campos – O que eu sei do plano governamental que aconteceu em relação ao usuário de crack, do governo federal, é que, a princípio, focava a política de saúde e do tratamento. Não conheço iniciativas ao longo do Brasil, de sucesso, em relação ao usuário de crack. Esse plano de internação do governo federal, a gente tem que enfatizar, embora o plano continue com uma linguagem militarizada.

No caso do crack, o que a gente sabe é que os modelos de sucesso em relação ao usuário do crack têm como prioridade o tratamento ambulatorial na rua e não a internação, muito menos a internação compulsória, que é o que acontece no caso do Rio de Janeiro (RJ). Essas duas questões nós sabemos que não funcionam. O que é dito como sucesso, uma experiência que é bem-sucedida, é o tratamento ambulatorial na rua. Porque esse tratamento deveria envolver diferentes atores de política pública, social e de saúde, no auxílio de assistente social, psicólogo, sociólogo, médicos, para a recuperação desse usuário.

Adital – Como você interpreta a ação deflagrada na região da Cracolândia? Você acha que ela foi abusiva?

Marcelo da Silveira Campos – A ação foi extremamente abusiva do ponto de vista de que ela priorizou uma ação da Polícia Militar e, novamente, não uma ação de política pública, social e de saúde. Então, essa militarização de um problema de saúde pública, a perspectiva e os dados que saíam em relação à incriminação, que é a prisão na Cracolândia, se referem a um tratamento militar de um problema de saúde pública. Isto não é um tratamento de polícia, seria um tratamento desses outros atores como dito antes e, em destaque, política de saúde e social.

Adital – Há dados recentes de prisões realizadas no país? O que eles significam?

Marcelo da Silveira Campos – Tenho dados de São Paulo (SP). Em 31/12/2010 nós tínhamos 170.829 pessoas presas. Em 31/12/2011, nós tínhamos 180.333 pessoas presas. Quer dizer, o crescimento no ano de 2011, de pessoas presas, foi de 9.504. Isto resulta numa média mensal de 792 pessoas presas e uma média diária de 26,4 prisões. Para se ter uma ideia do impacto no encarceramento e de como está sendo tratado esse usuário de crack, em 27/2/2012, quer dizer, em dois meses decorridos desse ano, nós tínhamos 185.872 pessoas encarceradas. Isto significa, em 2012, o crescimento em dois meses, lembrando que a ação da Cracolândia começou no dia 3 de janeiro de 2012 e, tivemos até o final de fevereiro e início de março, 5.539 novas prisões, o que dá uma média diária de 95,5 pessoas presas.

Acredito que isso quer dizer alguma coisa, isso significa a prisão desses usuários na Cracolândia. Desse ponto de vista, a ação foi completamente desastrosa. Isto é uma consequência, mas pode-se falar em outras, de que o usuário de crack não tendo o seu problema e sua saúde respeitados, não tendo um mero espalhamento por outras áreas da cidade, então ele não é efetivamente tratado, mas deslocado, e isso é uma resposta muito midiática.

Adital – O que pode e deve ser feito para alterar essa realidade da Cracolândia e da redução do consumo de drogas no Brasil?

Marcelo da Silveira Campos – A primeira coisa que deve ser feita para mudar essa realidade é compreender que uma política de redução de consumo não pode estar separada de uma política que é relacionada a esse uso do encarceramento. Então, nós temos que pensar em modelos como os de Portugal, que estão muito bem-sucedidos, ou seja, pensar em maneiras de tratar o usuário de forma diferenciada. Penso que isto é o mais importante.

(Nós) temos que tratar essa questão como problema de política de saúde e olhar para experiências bem-sucedidas e pensar seriamente essas questões, nessas experiências, debater esse processo de descriminalização de drogas para pensar na realidade brasileira, que certamente não é igual a outras experiências, mas que ainda tem muito a aprender e colocar esse plano do usuário unido a políticas de saúde, que foi a ideia inicial da Nova Lei de Drogas, referente ao novo Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad). Mas a consequência dela, por não distinguir usuário e traficante e por continuar criminalizando o usuário, apesar de ser despenalizado, é criminalizado, e isso acarretou essas consequências.

* Publicado originalmente no site Adital.


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