Os ideais da esquerda não estão mais em sintonia com a evolução das sociedades contemporâneas marcadas pela ascensão do individualismo consumista e pelo retiro hedonista na esfera privada. Em suma, estamos vivendo tempos de direita.
A esquerda, tanto a radical como a reformista, não tem se beneficiado com a crise financeira nem com o questionamento do liberalismo econômico que parecia surgir. Nas eleições europeias de 2009, enquanto o capitalismo financeiro parecia ideologicamente fragilizado, a social-democracia registrou uma derrota histórica. Do outro lado do Atlântico, um vento de direita soprou sobre as eleições de meio-mandato, que viram o partido do presidente Barack Obama perder sua maioria na Câmara dos Deputados. Este declínio das esquerdas, a partir da década de 1990, dá credibilidade à teoria da “direitização” das sociedades ocidentais, que floresceu em alguns círculos políticos e intelectuais que tinham sido amplamente mobilizados para explicar, em termos de hegemonia cultural, a eleição de Nicolas Sarkozy em 2007. Não foi o próprio presidente que invocou Gramsci para se felicitar por ter vencido a batalha cultural, antes de qualquer vitória eleitoral?
De acordo com essa leitura, os ideais da esquerda não estariam mais em sintonia com a evolução das sociedades contemporâneas, marcadas pela ascensão do individualismo consumista e pelo retiro hedonista na esfera privada. O “significado da história” de alguma forma invalidaria os seus próprios princípios, retornando a uma forma de arcaísmo e obsolescência. Em suma, estamos vivendo tempos de direita.
A obra de Raffaele de Simone, Le Monstre Doux, amplamente discutida e comentada na Itália como na França , recentemente sistematizou essa teoria. Para o filósofo e linguista italiano, o enfraquecimento radical da esquerda, ou mesmo seu declínio, tido como irresistível, estaria ligado à cultura da modernidade, que ele chama de “doce monstro”. Este sistema econômico-ideológico como um todo, favorável a uma nova direita centrada na mídia, no consumismo e no individualismo, estaria minando a esquerda. Deste ensaio, de um intelectual que reivindica participação no campo progressista, emerge um pessimismo radical. Se o livro é dedicado “aos que ainda acreditam”, nada indica que este é o caso do autor. Sua tese levanta questões reais: a dominação ideológica do liberalismo econômico lança raízes fortes no substrato cultural e se apoia nas mudanças sociais profundas que a esquerda, sem dúvida, não levou em conta suficientemente, nem legitimou. Mas também é simplista quando se pergunta: será que a “nova direita” não é forte diante das fraquezas da esquerda?
O predomínio do liberalismo, diz Simone, não se baseia apenas na economia, ele se baseia em uma dinâmica cultural profunda. Consumir, divertir-se, manter-se jovem: estas injunções permanentes são de longe mais hegemônicas que multiplicadas pela tecnologia da internet. O capitalismo tira sua força da sua capacidade de moldar as vidas individuais, de criar constantemente novas dependências e novas necessidades. Ela se apoia na cultura do narcisismo: de acordo com Simone, “a paixão, quanto mais estimulada, mais excitada, mais fica ligada à modernidade e ao egoísmo, ou seja, à concentração em si mesmo”. A sociedade de consumo faz parte da atenuação geral da paixão política e desmobiliza a classe trabalhadora, a qual não reivindica mais sua identidade, mas busca parecer como a burguesia que gostaria se ser.
A tendência ao consumo leva a uma “concentração extrema sobre o presente”. A percepção de futuro se esvazia, desqualificando o discurso de “progresso”. Sob o efeito da hipermidiatização das sociedades, a distinção entre realidade e ficção se desvanece – tudo se torna entretenimento – e a racionalidade ideológica da esquerda não é mais inteligível.
Essas evoluções culturais prejudicariam assim a relevância de qualquer projeto de transformação social. O chão desaparece sob qualquer tipo de esquerda. O autor certamente não menciona as deficiências próprias do ramo reformista desta família: falência moral de dirigentes, falta de convicção intelectual dos partidos, declínio do pensamento político, etc. Essa esquerda cavou sua própria sepultura, abandonando a luta dos trabalhadores, além disso ela mantém escondida e na invisibilidade a classe operária, considerada “indefinível” e, portanto, indefensável. Seus princípios se tornam “genéricos, vagos e acomodados, prontos para diversas conciliações e nada exclusivos em outros pontos de vista”. Refletindo sobre o processo da esquerda italiana, Simone a descreve como adoçada por edulcorantes, perdendo a cada ano os níveis de álcool para se tornar um líquido “insípido e aquoso”.
Mas isto não é o essencial. O declínio também se deve a “razões de proporções históricas maiores e mais poderosas contra as quais o combate é difícil”. “Com o advento da modernidade mundializada e consumista, os ‘ideais de esquerda’ – aqueles que se distinguem realmente da direita – não parecem estar à altura dos tempos.” Confrontada com a “diversão” generalizada e com uma cultura de imediatismo reforçada por uma forma de “desculturalização” política, a esquerda e os seus princípios “sacrificiais” não poderiam lutar. Sua política de alguma forma seria derrotada pelo Zeitgeist, ou espírito do tempo. Desorientada, o seu discurso perderia o sentido, já que ela não pode mais se encaixar nos desejos individuais.
Já a “nova direita” parece estar mais em sintonia com a modernidade. Suas vitórias eleitorais estariam menos relacionadas com o conteúdo de seus projetos políticos do que com sua capacidade de impor um pragmatismo ajustado às características dominantes da época. A direita que defendia tradicionalmente uma linha austera (valores morais e fortes conotações sacrificiais) tomou o partido do consumo, por vezes ostensivo. Com a ajuda das mídias, ela se apresenta como “uma mentalidade difusa e intangível, uma ideologia flutuante, um conjunto de atitudes e padrões de comportamento que sentimos no ar e cujos avatares podem ser observados na rua, na TV ou nas mídias”. A “nova direita” surgiria então mais como uma cultura do que uma força política concreta. Ultracapitalista, ela defende a riqueza, o sucesso e despreza as atividades intelectuais. Mais próxima à aparência dos interesses imediatos do indivíduo contemporâneo, afável, integrada ao sentido da história, ele retornaria à esquerda e ao seu arcaísmo taciturno e antiquado.
A leitura de Les Monstre Doux mergulha no constrangimento. Tudo soa verdadeiro e falso ao mesmo tempo. Simone capta com grande clareza os ares dos novos tempos e sua capacidade para danificar ou suprimir os valores da esquerda, mas ele fornece uma explicação grosseira dos mecanismos mais profundos. Onde ele quer chegar? Sua crítica ambígua sobre modernidade é emprestada de velhos fundamentos antidemocráticos, até mesmo reacionários, uma perspectiva mais para Tocqueville do que as perspectivas mais críticas e mais estetizantes de um Guy Debord ou de um Baudrillard (crítica da “sociedade do espetáculo” e a desrealização). Simone denuncia o abandono por parte da esquerda da classe operária, negando qualquer ligação com o marxismo e com a luta de classes. O filósofo não descreve nunca as características da nova esquerda (como ele a chama). Será que ela deve se curvar ao espírito dos novos tempos? Deve derrotá-lo? Deve se extinguir?
Sua análise leva apenas a uma forma de pessimismo ultrajante de “declínio”. Ele ignora as novas formas de resistência e de radicalismo, as empresas de redefinição intelectual de esquerda ou os valores “pós-materialistas” que emergem em torno da ecologia. O Monstre Doux deve muito ao contexto da vida política italiana e à sua “berlusconização”, que o autor generaliza um pouco rápido demais, como os trajetos do conjunto das democracias ocidentais. A filosofia do “bling-bling” de Nicolas Sarkozy se insere bem nos ares dos novos tempos descritos por Simone, mas não foi o inimigo jurado da jornada de 35 horas que fez a exaltação “sacrificial” sobre o “valor de trabalho” como um dos slogans de sua campanha? Será que a direita também não defende o sacrifício do “rigor”?
Na França, a tese de uma direitização de sistema de valores de cidadãos merece ser altamente qualificada. As preferências econômicas dos franceses conforme constam nas pesquisas por sondagem, mais estudadas de 2007, combinam, segundo o tópico, liberalismo e antiliberalismo. Algumas propostas de direita encontram um eco crescente: limitação do direito à greve nos transportes públicos ou efeito de desincentivo do salário mínimo de inserção (RMI) na busca por emprego. Os valores individualistas da concorrência estão avançando em categorias populares. Assim, 61% de trabalhadores e 68% dos funcionários entrevistados estão “totalmente” ou “de acordo” com a ideia de que “deveriam dar mais liberdade para as empresas”.
No entanto, as pesquisas permanecem muito comprometidas com a intervenção do Estado na economia, com a proteção do mercado de trabalho e com a redistribuição (57% dos entrevistados em 2007 são favoráveis à ideia de que devemos “tirar dos ricos para dar aos pobres”). Os valores de igualdade e solidariedade continuam fortemente enraizados e são demais para se diagnosticar um processo de “dessolidarização” na sociedade atual. Se parte das categorias populares virou-se para a direita, é menos por apoio a seu projeto liberal do que pelo motivo dela saber habilmente desviar suas aspirações de mais proteção e ordem no campo dos valores. “A insegurança econômica desencadeada pelo novo capitalismo levou um partido do proletariado e da classe média a buscar segurança em outros lugares, em um universo ‘moral’ em que ele não se move muito, mesmo que tenha que reabilitar comportamentos mais antigos e familiares.”
O pessimismo de Simone é de longe mais questionável do que as últimas páginas do livro, onde ele desenvolve uma concepção essencialista do homem, “naturalmente de direita” e egoísta, uma reminiscência da antropologia utilitarista do neoliberalismo, da qual o autor também denuncia os efeitos… No entanto, como questionar que a esquerda não colocou a questão cultural no centro da sua agenda intelectual e que perdeu sua capacidade de “dar sua forma ao mundo”, nas palavras do autor? A modernidade liberal desestabilizou em profundidade seus pressupostos morais e culturais. Todas as formações sociais, até mesmo as menos coercitivas, têm um “espírito” essencial para o funcionamento da ordem estabelecida, que segrega o consenso subjetivo e, portanto, a legitimidade de que necessita. Não há extensão possível do capitalismo sem transformação do homem e de sua subjetividade. O liberalismo consiste de um projeto cultural e antropológico que não só pretende transformar os modos de ação dos governantes, mas também as dos governados.
A direitização que descreve Simone nasce de mudanças sociológicas que ele não tem os meios para analisar, contribuindo assim para fatalizá-la: declínio das adesões subjetivas de classe, desmobilização política das categorias populares relacionadas à fragilidade organizacional dos partidos de esquerda, ruptura e atomização da sociedade, múltiplos processos de deslocamento social, envelhecimento da população, periurbanização, etc. Muitas evoluções que não produzem efeitos políticos unívocos, mas hoje são bastante desfavoráveis para a esquerda, enquanto outros, como o aumento dos níveis de ensino, provavelmente lhe são favoráveis.
Além disso, os valores consumistas e liberais prosperam muito mais que a esquerda, que nem se opõe a eles com seu vácuo cultural e ideológico. Light e pouco segura de sua identidade, ela é vista pela crítica como uma direita desinibida que busca dividir o salário, jogando uma classe contra a outra. Basicamente, o discurso sobre a “direitização” oferece um modelo convenientemente inteligível das realidades políticas e sociais. E justifica que deve fazer uma “reorientação” de sua linha de ação para se reencontrar mais em sintonia com a “opinião”. Fatalista, politicamente orientada, a tese pode alimentar uma forma de renúncia e fortalecer o desarmamento intelectual da esquerda.
No entanto, a esquerda é baseada historicamente na dinâmica de politização da sociedade, de aculturação política, um trabalho permanente de romper com as evidências “naturais” (as desigualdades sociais). Aceitamos a derrota de bom grado, mas não desistimos da luta.
* Lefebvre Rémi é professor de Ciência Política na Universidade de Lille II.
** Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil.