Por Maria Helena Masquetti*
Sem dúvida, os avanços da medicina têm nos aliviado de dores que, como virou moda dizer, ninguém merece. No entanto, nestes tempos de tantos confortos à venda, outras dores que provavelmente estariam cumprindo a função de comunicar algo que, no íntimo das pessoas, mereceria ser acolhido, suprido ou tão somente levado em conta, vêm sendo medicadas precipitadamente, focando-se mais a doença do que a pessoa. Assim, mesmo situações comuns do nível de uma entrevista de emprego, uma perda financeira ou uma decepção amorosa chegam a ser motivo para o uso de algum psicofármaco.
A começar pelo medo, sua existência em nossas vidas se torna cada vez mais incômoda. Despreza-se, por exemplo, o fato dele balizar a importância dos nossos desafios, de nos proteger de atos arriscados ou pelo menos de sinalizar que simplesmente estamos diante de uma experiência sem referência prévia em nossa memória. Do mesmo modo, a ansiedade, a tristeza e a solidão, entre outros sentimentos, vão sendo, pouco a pouco, enquadrados na categoria de transtornos emocionais. Mesmo para aqueles que vejam razões para considerar sua realidade uma droga, aliviar imediatamente um sintoma pode, isto sim, adiar sua solução ou fazer cessar um grito por algum direito negado, um velho nó na garganta ou um desencanto pela espera de algo que não pôde ser.
Mas, se é tão delicado pensar em tudo isso em relação a pessoas adultas, pior ainda para as crianças que, justamente por estarem em formação, não têm como compreender, explicar e muito menos avaliar seu eventual comportamento inadequado. E, a partir daí, já se pode fazer a pergunta: inadequado para quem? Geralmente nos comovemos ao ouvir sobre tantos gênios que foram considerados alunos problema até que pudessem expressar seus talentos. Porém, em geral, a intolerância à frustração – bem típica de nossa época – de não se ter um aluno ou filho “exemplar” tem apontado para muitos pais, educadores e, claro, médicos, a saída pelo já famoso diagnóstico do TDAH – Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. Em números, essa febre da medicalização está representada pelo aumento de 75% no consumo do metilfenidato (Ritalina) entre 2009 e 2011* como forma de restabelecer a concentração das crianças entre 6 e 16 anos.
Por que as crianças estariam tão inquietas? O que estariam querendo revelar com a relutância em ir para a escola ou estudar? Onde estariam vagando seus pensamentos no momento em que se desconcentraram da lição ou leitura? Salvo falhas neurológicas relevantes, as reações humanas respondem a algum motivo. Ter um filho obediente pode nos livrar de problemas que nem sempre estamos com tempo ou condições de lidar. Mas ao medicar uma criança antes que ela diga ao mundo a que veio, pode significar a perda de um dos capítulos mais determinantes de sua vida. E da nossa ao lado dela. “Ou feia ou bonita, ninguém acredita na criança real!”. Para a indústria farmacêutica, este trecho da música deve justificar sua overdose de lucros. Para nós, pode representar a chance de uma reflexão urgente sobre o futuro da infância. Pensar e mudar, é só começar.
– Dados do Boletim de Farmacoepidemiologia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), fev. 2013.
* Maria Helena Masquetti é graduada em Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em Psicoterapia Breve e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Instituto Alana.