O atual tripé da política econômica (superávit primário alto, câmbio flexível e o sistema de metas de inflação) dará sustentação ao crescimento e conduzirá o país a um novo patamar de desenvolvimento, alterando a distribuição de renda e riqueza em direção a mais igualdade?
O Brasil vem crescendo a uma taxa de 4,5%, em média, nos últimos sete anos (2004-2010). Este novo patamar, após longo período de baixo crescimento, tem renovado as expectativas da sociedade brasileira. As taxas de desemprego voltaram aos níveis de vinte anos atrás, e a criação de novos empregos – a grande maioria com carteira de trabalho assinada, nos setores privado e público – tem superado o número de ingressantes no mercado de trabalho. Essa dinâmica, em que a demanda de trabalho tem ultrapassado a oferta, contribui para a redução do desemprego. Um conjunto de outras políticas públicas, como a valorização do salário mínimo, o Bolsa Família e a política de crédito, impulsiona o crescimento da economia, criando um círculo virtuoso de expansão da renda e do emprego.
Essa sensação de bem-estar e otimismo não deve encobrir, contudo, os desafios e obstáculos a superar para que o país trilhe uma rota de desenvolvimento com inclusão e melhoria do padrão de vida de toda a população, capaz de reduzir a enorme desigualdade de renda e riqueza ainda vigente no Brasil. E o enfrentamento desses desafios exige a implantação de políticas que vão além da política econômica ou macroeconômica, embora esta seja peça estratégica para o país atingir um patamar superior de desenvolvimento.
O que caracteriza o atual estágio de desenvolvimento e qual o papel da política econômica?
Em 2011, o Produto Interno Bruto por habitante (PIB per capita) no Brasil, importante indicador para avaliar o estágio de desenvolvimento dos países, deve atingir cerca de R$ 20 mil, ou US$ 12 mil. Para efeito de comparação, os Estados Unidos atingiram um PIB per capita de US$ 47 mil em 2010, quase quatro vezes o do Brasil. Ainda que se considere que atingir esse nível de renda dos Estados Unidos e dos países desenvolvidos pode demorar um longo tempo, não há como ignorá-lo como uma meta importante de bem-estar da população mundial(1).
Já tendo iniciado esse movimento, nas próximas duas a três décadas o Brasil vai aprofundar o fenômeno que os especialistas em demografia denominam de janela de oportunidade demográfica ou bônus demográfico. Nos próximos vinte a trinta anos, a proporção da população jovem e adulta em relação à população que não trabalha (dependente) vai atingir o maior patamar. Nesse período, o país poderá alcançar o mais alto potencial produtivo em muitas décadas, elevando as oportunidades de criação de renda, riqueza e bem-estar para a população.
Para “realizar” esse potencial é necessário crescer e incluir a população que chega todo ano ao mercado de trabalho, gerando empregos e ocupações decentes e produtivas e pagando salários mais altos. A pergunta é mais que oportuna. Com a atual política econômica, nós vamos chegar lá?
A atual política econômica está apoiada num tripé: o superávit primário das contas públicas, a taxa de câmbio flexível e o sistema de metas de inflação sob comando do Banco Central. E quais são seus principais resultados?
Convivemos com as mais altas taxas de juros reais (descontada a inflação) do mundo. Temos a mais alta carga tributária (a relação entre os impostos arrecadados e o tamanho da economia) entre os países com o mesmo nível de renda per capita. E, nos últimos anos, há uma forte tendência à apreciação da moeda brasileira, dificultando a competitividade dos produtos exportados pelo Brasil e aumentando a facilidade de importar produtos de outros países.
Antes de enfrentarmos o debate sobre a política econômica, cabe registrar que existem diversos obstáculos estruturais ao desenvolvimento. A qualidade da educação, especialmente a educação pública e universal, a carência de infraestrutura econômica, a saúde e o déficit habitacional, talvez estejam entre os principais. Atingir outro patamar de desenvolvimento implica enfrentar esses desafios, sem o que, apenas crescer em termos econômicos não significará bem-estar para todos os brasileiros.
Apesar dos problemas apontados acima, se o país sustentar o atual ritmo de crescimento, entre 4,5% a 5%, nos próximos dez anos (ou até antes desse prazo), a economia brasileira vai se tornar a quinta maior do mundo. Nosso PIB ultrapassará, em tamanho, o da França e o da Inglaterra (embora tenhamos uma renda per capita bem menor).
Ainda que não se trate de competição entre países, tal fato representará uma espécie de encontro com nosso destino, já que temos a quinta ou sexta maior população do planeta (devemos ser ultrapassados pelo Paquistão em poucos anos).
Mudar o time que está ganhando?
Voltando ao tema central deste artigo, é necessário mudar a atual política econômica, que é a mesma política adotada na maioria dos países, sobretudo os emergentes? Ou, dito de outra forma, o atual tripé da política econômica dará sustentação ao crescimento e conduzirá o país a um novo patamar de desenvolvimento, alterando a distribuição de renda e riqueza em direção a mais igualdade?
A discussão sobre a atual política econômica, em senso estrito, dificilmente criará condições políticas para alterá-la, considerando os interesses internos e externos que trabalham para mantê-la. É necessário ampliar a dimensão do debate, trazendo ao palco público o tema do desenvolvimento nacional. Senão – dirão os pragmáticos e defensores da atual política – para que mexer em time que está ganhando, uma vez que o país está crescendo, gerando emprego, reduzindo o desemprego e, ainda que timidamente, a desigualdade da renda do trabalho?
A resposta para essa pergunta, no nosso entender, só é possível condicionando a discussão da política econômica ao debate mais amplo do desenvolvimento nacional. Resgatar a ideia de que a política econômica e as demais políticas correlatas (fiscal, tributária, cambial) devem estar subordinadas ao objetivo maior do desenvolvimento nacional e da distribuição da renda.
Na prática, significa dizer que as taxas reais de juros têm de cair para níveis internacionais (muito baixos), a moeda brasileira não pode continuar se apreciando e colocando em risco diversos setores, em particular o setor industrial. Por sua vez, a dimensão do gasto público deve considerar a superação dos principais problemas como erradicação da pobreza, qualidade da educação e da saúde, eliminação do déficit habitacional e construção da infraestrutura econômica.
Iniciemos pelos vergonhosos juros praticados no Brasil. Por que são tão altos? A que interesses respondem?
Certamente aos interesses do rentismo arraigado da parcela endinheirada da sociedade brasileira que deles se beneficia. É uma enorme simplificação, no debate econômico e político, “culpar” o Banco Central e seus diretores, que compõem o Copom(2), pelas decisões sobre o nível dos juros no Brasil. Ou “culpar” a ganância dos bancos que a cada ano apresentam lucros recordes nos seus balanços, influenciados por essas taxas exorbitantes. Sem dúvida, essas instituições contribuem para esse estado de coisas. Mas não devemos ignorar que juros altos refletem os interesses de alguns milhões de brasileiros, ou estrangeiros, que aplicam seus recursos no sistema financeiro brasileiro, inclusive os pequenos poupadores que, em geral, desconhecem a lógica de funcionamento de nosso sistema financeiro. O fato é que a forma de financiamento da nossa dívida pública acaba premiando os aplicadores no curto prazo. Ao contrário da maioria dos países, nos quais a maior rentabilidade das aplicações tem como contrapartida aplicações em títulos de longo prazo, no Brasil o aplicador ou o especulador tem alto retorno em aplicações de curtíssimo prazo.
O desmonte dessa perversa engrenagem é inadiável. Mas só será feito com forte apoio da parcela da sociedade penalizada por esse modelo. E quem são os prejudicados por essa política de juros altos? Os trabalhadores que dependem do crescimento, dos investimentos e da geração de empregos; os micro e pequenos empresários que dependem de crédito barato para expandir seus negócios; a população mais carente que depende das políticas públicas de educação, saúde, seguridade social, habitação, transferência de renda e investimento público em infraestrutura. Não é possível ignorar o prejuízo para as políticas públicas que decorre do “rombo” que esses juros provocam no orçamento fiscal, forçando a manutenção de altos superávits e contenção de gastos, e limitando o uso desses recursos para fortalecer e ampliar essas políticas.
Nessa complexa teia de interesses, o poder de vocalização e pressão dos agentes envolvidos é muito assimétrico. Enquanto o interesse das altas finanças e do rentismo domina os principais meios de comunicação e defende a manutenção dos juros mais altos do mundo, atacando a voracidade de um Estado perdulário e endividado, os trabalhadores e a maioria da população, que não aplicam recursos no sistema financeiro, não têm o mesmo poder de influência no debate público. Registre-se, contudo, que o movimento sindical e outras forças sociais, incluindo empresários do setor industrial, têm criticado insistentemente essa política nos últimos anos.
Outra dimensão importante do atual funcionamento da economia brasileira é a tendência de apreciação da moeda brasileira em relação ao dólar e às demais moedas (euro, iene, yuan, peso). Tudo se passa como se essa valorização fosse resultado “natural” do recente sucesso da economia brasileira. Explica-se essa tendência de valorização pelos êxitos do país em termos de crescimento(3). A boa performance da economia brasileira atrai investimentos externos em carteira (títulos, ações) e investimentos produtivos que pressionam a moeda brasileira para cima. Só não é dito que a total liberdade do fluxo de capitais, associada às mais altas taxas de juros do mundo, torna o Brasil o local mais atraente para aplicações estrangeiras de curto prazo. Aplicações que têm como lastro uma dívida pública líquida e um Estado solvente que não dá calote! Nesta situação é muito difícil impedir a valorização da moeda brasileira!
A taxa de câmbio não está dissociada, portanto, dos juros altos. Historicamente, é importante frisar, os países que se desenvolveram e atingiram níveis elevados de renda per capita utilizaram largamente instrumentos de proteção de sua indústria nascente e de seu espaço econômico. E, diga-se de passagem, até hoje o fazem. Casos como os da Alemanha e dos Estados Unidos são conhecidos na literatura econômica. Os exemplos recentes são ilustrativos. O mais importante é o da China, que mantém estrito controle sobre o valor, desvalorizado, de sua moeda. Exigir que países no estágio de desenvolvimento do Brasil abram seus mercados e valorizem sua moeda não é nem natural, nem utiliza como aprendizado a história de países que atingiram altos estágios de desenvolvimento.
Impostos: fonte de injustiças
Outro ponto da política econômica merece ser debatido no contexto de um projeto nacional de desenvolvimento. Trata-se da estrutura tributária brasileira. Virou lugar-comum falar mal da elevada carga tributária brasileira. Ela é mesmo alta, considerando a nossa renda por habitante. Destrinchar esse enigma da alta carga tributária é muito importante para o futuro do país.
No Brasil, as famílias e pessoas de alta renda pagam poucos impostos (quando pagam). Mais da metade da carga tributária brasileira (alguns estudos apontam cerca de 60%) é constituída por tributos indiretos que incidem no consumo e no faturamento das empresas. Os impostos sobre a renda e o patrimônio, embora justos em termos de equidade, são minoritários no bolo da arrecadação tributária. Mesmo no caso do imposto de renda, a maior parcela do montante arrecadado é constituída pelo imposto retido na fonte dos assalariados, e não das pessoas e famílias de renda mais alta.
Os impostos indiretos que incidem na circulação e no faturamento de bens e serviços são integralmente repassados para os preços, e pagos por toda a população. Nesse modelo, os que ganham menos pagam mais impostos, já que o valor do imposto cobrado do consumidor, de alta ou baixa renda, é o mesmo. É o Robin Hood às avessas, quem pode mais paga menos!
A estrutura do sistema tributário nacional tem tudo a ver com o recorrente debate sobre a competitividade da economia brasileira. Como os impostos indiretos estão embutidos nos preços dos bens e serviços, quanto mais dependente dos impostos indiretos é a arrecadação tributária, mais caros e menos competitivos são os produtos brasileiros, dificultando sua competitividade no comércio internacional. Uma profunda mudança do sistema tributário, que alterasse as bases da tributação, aumentando a arrecadação pela via dos impostos sobre a renda e o patrimônio, além da indiscutível justiça em tributar quem tem mais, teria enorme influência na competitividade internacional da economia brasileira.
Não há como negar que avançamos muito nos últimos anos no Brasil. O novo patamar de crescimento e de geração de empregos, as políticas de valorização do salário mínimo, transferência de renda, expansão do crédito, entre outras, foram escolhas importantes da sociedade e do governo federal para atingir esse novo estágio de desenvolvimento.
Caminhando para se transformar na quinta economia do mundo, o Brasil tem atraído as atenções. Os grandes eventos esportivos (Copa e Olimpíadas), a necessária e urgente recuperação da infraestrutura econômica e a descoberta do pré-sal têm criado condições para que sonhemos com um futuro promissor.
Nesse futuro, a imagem de um copo com água pela metade talvez sintetize nosso atual momento. Ou a frase “tão perto, tão longe” possa expressar os próximos desafios. Manter o crescimento acelerado vai introduzir tensões inevitáveis na legítima disputa pela renda nas próximas décadas. Um exemplo oportuno é o atual debate sobre os salários no Brasil. É difícil visualizar um país desenvolvido com os trabalhadores recebendo salários baixos. A trajetória do nosso desenvolvimento passa pela elevação da participação dos salários na renda nacional. Não há outro caminho.
Acompanhando os termos da discussão desse tema atualmente, os analistas de sempre dizem que os salários não podem crescer acima da produtividade. Não há como ignorar que a produtividade é um fator importante para viabilizar a elevação da renda per capita no Brasil. Mas, mantido o crescimento dos salários segundo a produtividade, teremos congelada a atual e injusta distribuição de renda.
Esse talvez seja o principal desafio do país nos próximos anos. Como aumentar os salários e manter a competitividade da economia brasileira? Reduzir a carga de juros, transformar a estrutura tributária e manter o câmbio em patamar competitivo é o caminho para que o país cresça, os salários subam e a distribuição de renda se modifique sem que as tensões dessa legítima disputa impeçam o desenvolvimento.
Notas
1 Não desconsideramos que o debate sobre o nível de renda per capita, ainda que importante, não deve ser realizado sem envolver a dimensão socioambiental.
2 Comitê de Política Monetária, instituído em 20 de junho de 2006, composto pela diretoria do Banco Central.
3 Atualmente, se essa fosse a única explicação, a moeda chinesa seria a mais valorizada do mundo!
* Clemente Ganz Lúcio é diretor técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) e membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). Sérgio Eduardo Arbulu Mendonça é economista e técnico do Dieese.
** Publicado originalmente no site Le Monde Diplomatique Brasil.