O termo “escolha de Sofia” vem sendo utilizado, em especial na área médica, para situações extremas em que, diante de dois casos graves, e sem condições de atendê-los ao mesmo tempo, faz-se necessário escolher aquele caso que tem mais chances de sobrevivência. Pode-se também fazer analogia do termo com situações fora da medicina, em que as opções são estreitas e há necessidade de fazer escolhas que representem algum tipo de dano.
Nesse sentido, pode-se dizer que o Brasil está diante da necessidade de fazer uma série de “escolhas de Sofias” para escapar do atraso em que ainda se encontra a maior parte de seu povo, seja em termos de direitos humanos básicos, como renda, moradia, saúde, saneamento e educação, seja em termos de acesso a democracia e cidadania, cultura e bens tecnológicos modernos.
Por exemplo, não é possível atender àqueles direitos humanos básicos sem transformar o país numa potência industrial moderna e competitiva, que possa gerar as riquezas capazes de serem transformadas em recursos para resolver os problemas de infraestrutura urbana e social e, além disso, serem redistribuídas também entre o povo. E, nas condições do Brasil, isso terá que ser feito, ainda por um período difícil de prever, por empresários privados e um Estado capenga, que jamais foi revolucionado para servir ao povo e cujas estatais foram reduzidas e só atuam em algumas poucas áreas estratégicas.
No entanto, há correntes de opinião que consideram a industrialização uma espécie de volta ao modelo exploratório implantado pelo governo militar. Ou uma ferramenta de destruição ambiental e de atentado aos direitos indígenas. A partir dessa visão, colocam-se contra a construção da infraestrutura energética e de transportes na Amazônia e em qualquer área em que o meio ambiente sofra algum tipo de agressão.
É evidente que os argumentos contra os antigos modelos de desenvolvimento industrial têm alguma base, em especial porque não eram inclusivos, nem se preocupavam com o meio ambiente. Isto é, ao invés de redistribuírem renda, concentravam-na nas mãos de alguns potentados. E, ao invés de incluírem projetos que combinassem desenvolvimento com proteção ambiental, a exemplo de saneamento básico, reflorestamento para uso econômico controlado e disseminação de métodos econômicos de consumo energético, simplesmente ignoravam tais necessidades.
Também é evidente que usinas e fábricas industriais, para serem viáveis, causam diferentes graus de poluição e danos ambientais. Hidrelétricas, mesmo utilizando turbinas a fio d’água e lagos mais reduzidos, redundam em algum tipo de desmatamento e de deslocamentos populacionais. A construção de ferrovias e rodovias, assim como de portos e aeroportos, também causa impactos de diversas ordens no ambiente. E tudo isso vai resultar numa exploração mineral mais intensiva. Não é difícil listar todos os problemas que a industrialização gera, inclusive pressionando a infraestrutura urbana e as condições sociais.
O problema é que não há outro caminho para gerar empregos e riquezas numa escala que torne possível redistribuir renda e melhorar o acesso aos direitos humanos básicos. A ideia de que é possível substituir a industrialização por algum outro tipo de “desenvolvimento sustentável” não leva em consideração que isso só foi possível, mesmo assim em parte e à custa da exploração dos povos dos países periféricos, naqueles países que, após 200 anos, completaram seu ciclo de desenvolvimento industrial.
A opção por uma escolha de Sofia em que o Brasil deva congelar seu desenvolvimento industrial, limitar sua exploração mineral e paralisar sua produção de commodities agrícolas, dedicando-se exclusivamente aos serviços pós-industriais, representa, no mínimo, um impedimento para a geração de riquezas próprias na escala necessária para a inclusão social e para tentar reduzir a dependência externa do país aos produtos industriais que não fabricamos.
É por isso que não tem sentido que o pacote de investimentos para a região amazônica, de mais de R$ 200 bilhões, ao invés de ser saudado como uma oportunidade para o desenvolvimento dessa área imensa do país, que sempre foi relegada a segundo plano, seja considerado como substituição ao que chamam de “desenvolvimento regional sustentável”.
Os críticos, embora digam que apoiam o desenvolvimento na Amazônia, colocam-se totalmente contra as obras de infraestrutura em energia, transportes e mineração que, segundo eles, servirão apenas para a instalação de indústrias e para o estabelecimento de um corredor de exportação, num arco que vai de Rondônia ao Maranhão, passando pelo Amazonas e Pará, através de uma malha logística que integrará rodovias, ferrovias e hidrovias. Seu argumento é que este seria um modelo de “desenvolvimento não sustentável”, que só beneficiará ao agronegóocio e conduzirá a região ao que chamam de colapso social.
Exemplo desse caos social seria a situação de Porto Velho. Essa capital estaria com um excedente de 120 mil habitantes, e falta de vagas nas escolas e nos hospitais, em virtude do afluxo de pessoas de outras regiões na busca de empregos na construção das hidrelétricas do Rio Madeira. Em resumo, para esses críticos, implantar hidrelétricas, instalar indústrias, construir eclusas para a navegação fluvial, integrar essa navegação a ferrovias e rodovias, colocar novas minas em produção e gerar milhares de novos empregos seria “não sustentável”, “causador de desmatamento” e “desorganizador do meio ambiente”.
Para mim, ao contrário, essa deve ser uma oportunidade ímpar para lutar. Primeiro, pela implantação de hidrelétricas que incluam em seus projetos programas de reflorestamento para uso econômico racional e programas de aquicultura. Segundo, pela instalação de indústrias adaptadas às condições regionais, em especial aquelas intensivas em biotecnologia, que tenham como uma de suas principais preocupações a conservação do bioma para uso racional. Terceiro, pela ampliação da navegação fluvial, tanto para transporte de cargas, quanto de passageiros e turismo. Quarto, pela implantação da exploração mineral com regras e exigências claras de reconstrução ambiental. E, quinto, principalmente, que todas essas atividades tenham como foco principal a geração de milhares ou milhões de empregos, que constituam na Amazônia uma classe trabalhadora industrial socialmente forte.
Esse pode ser um programa de lutas a ser ampliado. Mas, ao invés de temermos o “caos social” em cidades sem saneamento e com poucas escolas e hospitais, o que precisamos é exigir que essas cidades aproveitem esses desafios para modernizar-se e superar suas deficiências históricas. Em vez de nos lamentarmos que os empresários privados, nos quais se incluem os capitalistas industriais e do agronegócio, têm altos lucros, o que devemos fazer é exigir que paguem salários justos a seus trabalhadores, obedeçam às leis trabalhistas e sejam “politicamente corretos” em relação às questões ambientais. E, em lugar de nos lamentarmos por “modelos” passados genéricos, cujo principal sucesso tem sido esconder sua natureza capitalista, o que precisamos é ajudar a nova classe trabalhadora formada na região a apreender as contradições dessa natureza capitalista e lutar contra ela.
Em outras palavras, ao contrário de escolher o desenvolvimento necessário e possível para as condições brasileiras como a Sofia a ser sacrificada, prefiro escolher os danos colaterais desse desenvolvimento, que podem ser sanados no próprio curso da industrialização, especialmente na medida em que nosso desenvolvimento científico e tecnológico alcançar um novo patamar, e que a classe trabalhadora, da Amazônia e do resto do Brasil, se torne um ator social de primeira ordem.
* Wladimir Pomar é escritor e analista político.
** Publicado originalmente no site Correio da Cidadania.