A Serra da Ibiapaba, um território de quase três mil quilômetros quadrados situado nos limites entre os estados do Ceará e do Piauí, é uma espécie de Faixa de Gaza do Nordeste brasileiro. O apelido, em referência ao território cobiçado por palestinos e israelenses, é explicado pela disputa entre as duas unidades da federação pelo controle do local. Há mais de oito anos, de acordo com o procurador-geral ajunto do Piauí, João Batista de Freitas Júnior, os dois estados vêm dialogando por uma divisão justa das terras. Mas na última semana, o diálogo ganhou ares de conflito.
É que o governo do Piauí entrou com uma ação civil ordinária no Superior Tribunal Federal (STF), reivindicando uma área total de 2.821 quilômetros quadrados que hoje pertence ao Ceará. “Nós fomos pegos de surpresa com essa ação do Piauí”, afirma o deputado estadual Neto Nunes (PMDB).
De acordo com ele, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) traçou uma linha divisória entre Piauí e o Ceará, mas essa divisão não é bem aceita. Se o STF atender o pedido piauinense, os municípios que passariam para o outro estado seriam: Poranga (66%), Carnaubal (18%), Croatá (32%), Crateús (8%); Guaraciaba (21%); e Ipaporanga (7%). No passado, ainda no tempo do Império, por um decreto de Dom Pedro I, o Ceará cedeu uma parte do litoral para o Piauí e em contrapartida ficou com uma área de sertão. “Só que agora o Piauí quer uma parte de serra, fértil, bom clima, com pousadas, uma região turística do estado. O IBGE diz e conta que essa área é do Ceará. O pedaço trocado pelo litoral foi o sertão”, conta Neto Nunes.
Para o parlamentar, o ideal seria ouvir a população que atualmente é atendida por serviços dados pelo Ceará. “Todos os postos de saúde que estão nessa área em litígio, foram construídos pelo Ceará, os profissionais de saúde são pagos pelo Ceará, as escolas foram construídas pelo Ceará, então a nossa ideia era que a Assembleia do Piauí, junto com a Assembleia do Ceará, os prefeitos, com as lideranças comunitárias e vereadores, pudéssemos fazer reuniões com a população. Porque não adianta uma população que está sendo atendida no Ceará agora fazer parte do Piauí, até mesmo pelos costumes locais.”
O procurador piauiense rebate: “Já oferecemos duas áreas para eles em troca de uma. Eles não aceitaram. Oferecemos uma em troca de duas, não aceitaram. Oferecemos dividir no meio, não aceitaram. No final das contas eles disseram: ‘é tudo nosso’. Se é para perder tudo a gente vai para a Justiça”.
De acordo com Freitas Júnior, o governo cearense não pode investir no local porque as terras não pertencem ao Ceará. “Lá é um lugar muito abandonado. Alguma obra que tem lá foi feita irregularmente. E o Ceará não pode fazer nada onde não é dele. As comunidades não têm assistência médica, odontológica, não tem segurança porque a polícia não pode entrar porque não é do Piauí e nem do Ceará. Do jeito que está lá ninguém pode fazer nada e se o Ceará fez, fez irregularmente porque não é deles”, afirma.
“Se alguém mata lá, não sabemos se a Justiça daqui é que julga ou não. Se alguém tem um comércio lá, não sabe se paga tributo para cá ou pra lá. Essa área é uma fuga de bandido. Esse impasse causa muitos problemas.”
Uma matéria publicada pelo Diário do Nordeste, do Ceará, mostra um pouco da situação dos moradores da cidade de Cocal dos Alves, no Piauí. De acordo com a apuração do Diário, eles vão para Viçosa do Ceará para terem atendimento em um posto de saúde localizado na fronteira pelo lado cearense. “A determinação do prefeito Pedro da Silva Brito é de atender a todos, independente de Estado. Mas o ônus fica com a gente e o bônus com o Piauí”, reclamou à reportagem o secretário de Infraestrutura de Viçosa, Sérgio Fonteles.
São cerca de 100 famílias nessa situação que, segundo Fonteles, vão para o Ceará em busca de melhor atendimento na área de Saúde, como Educação.
Neto Nunes afirma ainda que hoje o Piauí reivindica a Serra que não está em discussão. Eles alegam que o IBGE está demarcando errado. “No decreto Imperial essa terra faz parte do Piauí e no IBGE faz parte do Ceará”, diz. E caso haja a mudança das fronteiras, parte da população cearense terá de trocar seus registros. “Eles vão deixar de ser cearenses para ser piauienses. Por isso eu acho que quem tem que ouvir as pessoas”, lamenta o deputado Neto Nunes.
Em entrevista ao jornal Diário do Nordeste, o procurador-geral do estado Kildere Ronne disse que eles reivindicam respeito “às regras que foram definidas ainda no século passado”, acrescentando que o objetivo é acabar com a insegurança jurídica entre os Municípios pertencentes aos dois Estados.
Mas segundo o deputado do Ceará, como se trata de agregação de área, seria necessária a realização de plebiscito. Assim, a população decidiria se prefere pertencer ao Ceará ou ao Piauí. “Se a decisão da disputa for para a Justiça, só vai poder ser resolvida de uma forma essa questão: plebiscito”.
Ele continua: “A lei diz que não pode ser só na região em litígio. Tem que ser entre o estado todo. O TSE vai mandar ouvir o Piauí inteiro e o Ceará inteiro para que o povo vote onde é que aquela região vai ficar. Se o estado perde ou se o estado ganha, quem tem que definir é o estado inteiro. Como o Piauí partiu logo para a justiça, eles partiram deixando só uma janela: o plebiscito. E eles vão perder porque o Ceará é maior que o Piauí.”
Nunes prevê que, caso seja feito o plebiscito, o processo pode levar ainda “10 ou 20 anos para ser resolvido”.
No Piauí, a visão é de que na pior das hipóteses o STF vai dividir o território ao meio. “E quem quiser se mudar de um estado para o outro depois da divisão, será livre. Até porque lá ninguém é dono de nada. Qualquer título que tenha lá é nulo. Toda titulação de propriedade que vai ter lá vai ser depois da divisão.”
O procurador-geral adjunto fala de sua experiência no conflito de limites de fronteiras entre o Piauí e o Tocantins. De acordo com ele, o impasse está quase no final, mas o processo começou há mais de 10 anos. “Há uma possibilidade de acordo. Está na fase final, foi para o STF também. O exército foi lá, mediu o divisor de água a partir do Rio Tocantins é para eles a bacia do Parnaíba é para nós. No final o exército vai colocar os marcos nos locais dizendo o que é Piauí, o que é Tocantins. E é o que a gente que eles façam lá. O STF é muito assoberbado de causas do país inteiro. Só falta o Supremo dizer se aceita ou não. Porque a palavra final é do judiciário. Eu creio que ele não vai chegar e dizer que o exército está errado, porque tanto o Piauí quanto o Tocantins já concordaram com o que o exército decidiu. Então aquilo não vai ser contra o que as partes já concordaram. Como essa ação foi anexada com a Bahia demora mais um pouco. Como essa é só entre Piauí e Ceará acredito que saia um resultado mais rápido.”
Agora o Ceará tem 30 dias para apresentar argumentos de defesa na Justiça.
Problema estadual
O problema do Ceará com Piauí se repete nas fronteiras com outros estados. Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte também possuem áreas de litígio com o estado cearense. Mas de acordo com o deputado Neto Nunes, “com esses é só definir o marco legal, são pequenos ajustes”. Além disso, todos os 184 municípios pertencentes ao Ceará também não têm seus limites demarcados.
Quando o estado foi criado, o limite foi feito de acordo com a linha do telégrafo “que não existe não mais, de acordo com a curva do riacho que não existe mais. Usaram-se estradas que não existem mais e hoje estamos refazendo os limites todos com GPS via satélite”, explica Nunes.
Segundo o deputado cearense, existe uma comissão técnica andando pelo Ceará inteiro, demarcando as divisas de cada uma das quase 500 localidades em conflito com relação à demarcação territorial, entre Municípios, distritos e vilas. Algumas dessas pendências, de acordo com o deputado, “envolvem até 10 metros”. Ele ressalta que essa é uma estimativa parcial. Para o parlamentar, nem todas pendências são graves, mas algumas são impactantes na definição de novas políticas públicas.
“A definição das linhas das divisas estaduais é importante para a elaboração de um Atlas com os limites dos Municípios cearenses, que pretendemos concluir até o fim do ano que vem”.
“Temos um prazo de até dezembro do ano que vem para a assembleia poder votar, depois desses dados todos feitos nos temos uma parceria com o IBGE e o Instituto de Pesquisa Econômica do Ceará (IPECE), União dos vereadores do estado, associação dos prefeitos e assembleia vota a consolidação disso e vai oferecer um atlas um livro todo georreferenciado contendo todas as divisas/fronteiras de todos os municípios do estado do Ceará”.
* Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.