Passar os olhos pelos jornais é exercício rico e nem sempre ameno. Ao mesmo tempo que nos dá o privilégio de saber o que acontece em toda parte – notícias surpreendentes e alentadoras -, essa cobertura ampla traz implícito o risco de preocupações, aflições, sofrimentos até. A semana passada não foi diferente.
Pode-se começar pela notícia (amazonia.org, 6/3) de que “grama de R$ 2 milhões da Arena da Amazônia não se adaptou e deverá ser substituída”. Nada menos que R$ 2 milhões para cobrir um campo de futebol – o que no interior do país se faz praticamente sem custo. E este, amazônico, ainda implica “custo de manutenção de R$ 60 mil mensais” ! Segundo os responsáveis, porque “o tipo de grama não se adaptou ao clima da região e será substituído”, com um novo custo de R$ 200 mil.
Por aí, vai-se chegar a um tema forte no noticiário durante toda a semana, que é a polêmica sobre o projeto de acesso a recursos genéticos e o pagamento pelo seu uso, na área de conhecimentos de povos indígenas e tradicionais. Se os implantadores da grama na arena conhecessem o tema da biodiversidade saberiam que uma espécie estranha ao bioma poderia não se adaptar. Poderiam ter evitado o prejuízo. Mas biodiversidade em geral – presente em quase tudo no nosso cotidiano – é considerada tema de “ambientalista exagerado”. Esquecendo que a remoção dessa biodiversidade pode implicar mudanças climáticas, acréscimo de custos econômicos, etc.
No dia seguinte os jornais diziam que o aumento do desmatamento e a perda de biodiversidade na Amazônia – mais 288 quilômetros quadrados de florestas só em janeiro deste ano (Agência Estado, 21/2) – vem somar-se aos 763 mil km2 já desmatados e 1,2 milhão de km2 quadrados já degradados, segundo o cientista Antônio Donato Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Amazônia.org, fevereiro de 2015).
Nos mesmos dias, vinha a notícia (Folha de S.Paulo, 7/3) de que um grupo de jovens cientistas no Japão desenvolvera método para transformar uma microalga em suco e biscoito – e com isso a empresa dona dos direitos do conhecimento abrira seu capital na Bolsa de Tóquio e seu valor imediatamente chegara a US$ 1 bilhão; suas vendas em um ano chegaram a US$ 28,5 bilhões. Agora estudam caminhos para produzir, a partir da mesma microalga, cosméticos, fertilizantes “e até combustível de avião”. A partir de uma única espécie da biodiversidade.
O pensamento vai para o início da década de 1980, quando o autor destas linhas gravou o documentário Amazonas, a pátria da água, com roteiro do poeta Thiago de Mello. Saímos de Manaus pelo Rio Amazonas num barco, entramos pelo Rio Nhamundá e algumas horas depois chegamos a um lugar chamado pelos moradores das redondezas de Lago da Serra do Espelho da Lua – um lago coberto de flores brancas, únicas por ali, o primeiro lugar que a Lua banhava com seus raios em noites de plenilúnio, quando surgia atrás da montanha. E, diziam eles, esse era o lugar em que as amazonas se banhavam. Da janela do barco, noite mais alta, era possível olhar e ver ao redor 360 graus de estrelas e de Lua, no céu e na água.
A parada seguinte foi na aldeia dos índios maués, que haviam sido os descobridores das propriedades alimentares do guaraná nativo, conhecimento que transmitiram aos portugueses no século 17, sem nada receber por isso. Quanto vale hoje na indústria de refrigerantes esse conhecimento sobre a biodiversidade, que, segundo os maués, lhes foi transmitido pelo deus que os criou? (É o que está em discussão hoje no projeto de acesso a recursos genéticos e a seu conhecimento por povos indígenas e tradicionais.) Ali, entre os maués, documentamos o ritual da tucandeira, em que jovens dançam, num ritual de passagem, com a mão enfiada numa luva de palha onde foram colocadas centenas de formigas tucandeiras enfurecidas.
Tudo isso faz parte do modo de vida, que inclui o conhecimento da biodiversidade. E este é fundamental, como lembra o biólogo Rômulo Batista, da Companhia da Amazônia, do Greenpeace Brasil (Ecológico, fevereiro de 2015)): “O desmatamento da Amazônia é uma das possíveis explicações para essa preocupante escassez de águas no Sudeste. Devemos nos mobilizar e exigir dos nossos representantes que o Desmatamento Zero seja transformado em lei. Sem floresta não tem chuva”. E o desmatamento “aumenta as incertezas e os riscos para a produção de alimentos, seja perto ou longe das áreas desmatadas, em função das mudanças de temperatura e da alteração nos regimes de chuva.”
Mas seguimos fazendo de conta que não sabemos disso, nem de outras graves questões da perda da biodiversidade. Não continuamos a derrubar a floresta para abrir pastagens? Não continuamos a avançar, além do desmatamento, com hidrelétricas como a de Belo Monte, que exigirá a abertura de um canal de 100 km e está custando R$ 30 bilhões (Miriam Leitão, 7/3), mas em certos momentos não conseguirá gerar mais que mil megawatts, embora a propaganda diga que serão 11 mil megawatts?
E assim vamos. Este último projeto está ainda envolvido na Operação Lava Jato, em que dirigentes de empreiteira disseram que pagaram R$ 100 milhões a partidos políticos pela aprovação do contrato. Também por lá o Ministério Público Federal pede à Justiça que suspenda a licitação para concessão de manejo nas florestas públicas amazônicas de Itaituba I e II, porque contraria exigências legais – da mesma forma que outros projetos como esse, onde já foram constatadas irregularidades graves.
Quando aceitaremos que tudo está relacionado com tudo – como vemos inclusive agora, na notícia (Geophysical Research Letters, 24/2) de que um satélite da Nasa calculou em 27,7 milhões de toneladas anuais a quantidade de fósforo – essencial para a Floresta Amazônica – que é transportada em poeira do Deserto do Saara que atravessa o Atlântico, trazida pelos ventos?
Sempre será tempo.
* Washington Novaes é jornalista.
** Publicado originalmente no site O Estado de S. Paulo.