Totalmente desproporcionada a reação de alguns jornalistas, articulistas, escritores e formadores de opinião (ou apenas da sua imprópria opinião) na defesa da gramática normativa contra o perigoso livro didático Por uma Vida Melhor, cuja distribuição foi autorizada pelo MEC.
Falsa polêmica. O livro não ensina a “falar errado”. Quem isto afirma não leu o livro, ou sequer entendeu corretamente a proposta. Talvez sofra de analfabetismo funcional. Talvez queira apenas exercer o papel de “puliça” lexical.
Vejamos, concretamente, no texto, o que os autores realmente escreveram:
“Você pode estar se perguntando: ‘Mas eu posso falar os livro?’ Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião.”
Como não lembrar de um artista que, com malícia, dizia que para falar errado era preciso saber falar errado?! Adoniran Barbosa cantava, saborosamente, comunicando o que era para comunicar:
As mariposa quando chega o frio/ Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra si isquentá/ Elas roda, roda, roda e dispois se senta/ Em cima do prato da lâmpida pra descansá
O que é adequado para cada ocasião, para cada contexto?
É inadequado empregar a mesóclise “dar-lhe-ei o troco” na barraca da feira. Soa estranho e ridículo, ainda que num exame de língua portuguesa seja a única resposta de uma determinada questão. E é inadequado que um advogado escreva “a gente vamos” numa petição inicial, lembrando que talvez os pais desse advogado assim falem, mas não devem por isso ser processados.
O livro ensina abertura para a realidade/variedade linguística e pede discernimento à pessoa com relação à adoção da norma culta. Ora, para que saiba a hora de adotá-la, precisará conhecê-la.
Ataques farisaicos
É possível que, afinal de contas, o alvo dos ataques ao livro tenha sido o ministro petista Fernando Haddad. Nada como um escândalo para queimar uma liderança política promissora que tanto desagrada setores da mídia vinculados ao PSDB.
E não esqueçamos o livro didático com problemas no mapa da América Latina que desmoralizou a Secretaria de Educação de São Paulo em 2009 (ver, no Observatório da Imprensa, “A Educação que não Está no Mapa”). Por que não aproveitar a ocasião e, com espírito de vingança, denunciar agora o MEC do PT, vendo nesse livro um plano diabólico para manter os “brasileiro” na ignorância?
Títulos e expressões bombásticas mal conseguem disfarçar o desejo de, pegando o livro para Cristo, crucificar o próprio Haddad:
** O assassinato da língua portuguesa (IstoÉ, 25/5/2011)
** Preconceito contra a educação e Os adversários do bom português (Veja, 25/5/2011)
** A pedagogia da ignorância (O Estado de S. Paulo, 18/5/2011)
** Livro escolar defende os erros de concordância (O Dia, 13/5/2011)
Maurício Dias, na Carta Capital (25/5/2011), desmascarou os defensores da lei e da ordem cultas. Em seu artigo Não há Uma Língua Só, sem descartar o enraizado preconceito linguístico que a autora do livro ‘maldito’ tinha mencionado, e agora se manifestou uma vez mais, Maurício detecta nas críticas exageradas, e enviesadas, a voz conservadora que reclama das políticas sociais adotadas por Lula. Aliás, essa voz já associava o falar popular do ex-presidente à incapacidade intelectual de governar o país.
Eliane Brum, para Época, escreve um texto sensato, deixando bem claro que, ao ler o capítulo inteiro em que a questão se apresenta (ler o capítulo inteiro é o mínimo que um bom jornalista deveria fazer no caso, e foi o que Eliane fez), “é fácil perceber que, em nenhum momento, os autores do livro afirmam que não se deve ensinar e aprender a ‘norma culta’ da língua. Pelo contrário. Eles se dedicam a ensiná-la”.
No Estadão, Tutty Vasques atribuiu ao ministro Fernando Haddad uma frase como resposta a essa artificial confusão: “Quem escreve certo – e mesmo assim por linhas tortas – é Deus!”. Seja essa frase verdadeira, ou apenas uma brincadeira inventada do humorista, constitui, afinal, uma bela resposta para tirar importância da polêmica forçada.
* Gabriel Perissé é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e escritor. Website: www.perisse.com.br.
** Publicado originalmente no site Correio da Cidadania.