No Brasil, estamos assistindo estupefatos ao descortinamento do conúbio inacreditável entre setores da mídia e o crime organizado: gravações feitas pela Polícia Federal com autorização da Justiça revelam que a maior revista do país, a Veja, teria sido regularmente pautada por bandidos que usam espiões privados, alguns egressos do antigo SNI, para muitas vezes forjar escândalos.
Décadas atrás, li a autobiografia do general Reinhard Gehlen, o chefe da espionagem alemã no Leste europeu durante a Segunda Guerra, o qual, com o fim desta e a derrota de Hitler, salvou a própria cabeça e as cabeças de seus auxiliares mais próximos vendendo aos norte-americanos seus arquivos e sua rede de contatos no coração da União Soviética. Tornou-se uma legenda, pela eficiência com que organizou, nas duas situações – sob Hitler, e sob os norte-americanos –, sua excepcional rede de espionagem contra os soviéticos.
O fim da guerra deveria ter significado também o seu fim. Precavido, antes da derrocada final alemã enterrou algo como 50 barris de microfilmes em montanhas da Áustria para negociá-los com os vencedores. Deu certo. Gehlen acabou conquistando a confiança dos norte-americanos, e da própria CIA, transferindo para eles sua lealdade e, principalmente, seus arquivos materiais e mentais. Na antiga função, notabilizara-se sobretudo por ter sob seu comando centenas de brilhantes jovens espiões, recrutados entre a elite dos exércitos alemães. Na nova, manteve esses critérios.
Cerca de quatro mil agentes do antigo Reich foram “transferidos” para os serviços de espionagem da nova Alemanha, dirigidos por Gehlen. Foram fundamentais para a organização de um serviço de informação ocidental direcionado contra os soviéticos. Antes, não havia nenhum sistema de espionagem estruturado nesse sentido pelos norte-americanos. Sem os serviços de Gehlen, e sem essa “transferência”, os Estados Unidos teriam uma tremenda dificuldade na condução ideológica de seu lado na Guerra Fria, que não se limitava apenas à espionagem, mas também à comunicação.
Essas reminiscências me vieram à mente com o fim da União Soviética, e com a pergunta óbvia: o que foi feito do imenso aparato de espionagem, informação e contrainformação soviéticos, deixado sem pai nem mãe enquanto o Estado se desestruturava no desgoverno Yeltsin? Sabemos que algo dele sobreviveu nas mãos de Putin, mas, até que este antigo homem de informação assumisse o poder, dezenas de milhares de espiões de dentro e de fora da União Soviética perderam privilégios e rendas, sendo forçados a buscar outros meios de vida.
Minha intuição é que essa rede universal de espionagem deserdada, não tendo em seu comando um general Gehlen que a negociasse em bloco com um novo patrão – os norte-americanos não se interessariam, a não ser pelos cabeças –, tem sido comprada no varejo por duas estruturas poderosas, que podem pagar por ela: o sistema financeiro e a grande mídia. O sistema financeiro usa a espionagem privada para manipular e chantagear políticos na busca de decisões legislativas a seu favor. É uma forma agressiva de lobby, que funciona sobretudo nos Estados Unidos.
Quanto à utilização pela mídia de espiões descolados das estruturas formais de espionagem, tivemos a primeira evidência mundial com o caso Murdoch na Inglaterra: este megaempresário das comunicações, dono do Wall Street Journal, dentre outros jornais de direita, foi pego com a boca na botija ao empregar espiões para grampear personalidades de várias áreas na Inglaterra para chantageá-los com seu jornal de escâncalos. Isto sugere o cruzamento de interesses financeiros com interesses midiáticos espúrios, numa conspiração gigantesca, em escala global, contra a democracia.
No Brasil, estamos assistindo estupefatos ao descortinamento do conúbio inacreditável entre mídia e crime organizado: gravações feitas pela Polícia Federal com autorização da Justiça revelam que a maior revista do país, a Veja, teria sido regularmente pautada por bandidos que usam espiões privados, alguns egressos do antigo SNI, para muitas vezes forjar escândalos. Note-se que o SNI (Serviço Nacional de Informações) foi extinto por Collor anos atrás, e seus espiões, assim como os soviéticos, foram deixados à solta no mundo para quem pagasse melhor.
Em relação à Veja, havia outros indícios de utilização de espiões, como tem sido bem documentado pelos jornalistas Luís Nassif e Paulo Henrique Amorim. Com minha experiência de mais de 30 anos de jornalismo ativo, e tendo eu próprio sido um dos introdutores do jornalismo econômico investigativo na área econômica no início dos anos 1980 – portanto, ainda sob a ditadura –, desconfio de reportagens com excesso de detalhes cronológicos, minuto a minuto – como recentemente fizeram com José Dirceu. Nenhum repórter consegue esses detalhes relativamente a fatos passados a não ser pela mão de um espião. Alguém os colhe, e a maioria que os colhe, colhe-os para vender.
Como outras revistas de direita, a Veja paga pelo material, na medida em que rende aumento de circulação, pondo um laranja para assinar. Tudo se faz, claro, sob o manto protetor da liberdade de imprensa!
* J. Carlos de Assis é economista e professor, presidente do Intersul, autor, junto com o físico e matemático Francisco Antonio Doria, do recém-lançado O universo neoliberal em desencanto, pela editora Civilização Brasileira. Esta coluna é publicada também no site Rumos do Brasil e, às terças, no jornal carioca Monitor Mercantil.
** Publicado originalmente no site Carta Maior.