A cidade baiana de Santo Amaro da Purificação, terra de Caetano Veloso e Maria Bethânia, é também sinônimo de abandono. Mesmo repleta de trilhas, cachoeiras e cascatas, o berço dos artistas ilustres jamais conseguiu se fixar na rota do turismo no belo Recôncavo Baiano desde a instalação, em 1960, da Companhia Brasileira de Chumbo (Cobrac), uma subsidiária da empresa francesa Metaleurop, então maior produtora do metal pesado no mundo.
A empresa encerrou as atividades nos anos 1990, mas a contaminação das áreas afetadas, e das pessoas que moravam ou trabalhavam na área de influência, ainda parece longe de ter um desfecho.
A grande exploração do minério, trazido de minas do interior do Estado, poluiu o rio Subaé – tema, inclusive, de música de Caetano, “Purificar o Subaé”. O solo da cidade, de 62 mil habitantes, também foi afetado em razão dos resíduos descartados de maneira indevida; o ar, num raio de um quilômetro do entorno da empresa, também foi contaminado.
No auge, a Cobrac, chegava a produzir 30 mil toneladas de chumbo/ano, o que correspondia a 5% da produção mundial. Quando fechou as portas, em 1993, a companhia havia comercializado 900 mil toneladas de chumbo. Mas, para a população de Santo Amaro da Purificação, o legado passa longe da prosperidade.
“A Metaleurop deixou uma herança maldita para os moradores de Santo Amaro: 3 milhões de toneladas de rejeitos contaminados, incluindo metais pesados, como o cádmio, e mais 300 mil toneladas de escória com alta concentração de chumbo”, afirma o deputado Sarney Filho (PV-MA).
Ao lado de Roberto Lucena (PV-SP), Sarney Filho está à frente de um grupo de trabalho que deverá averiguar, diagnosticar e propor soluções para a contaminação por chumbo e outros metais pesados no município.
Na última semana, ele e outros deputados federais se reuniram na Comissão de Meio Ambiente da Casa para colocar em discussão a situação do local.
Segundo Sarney Filho, armazenada a céu aberto, a escória foi levada pelos ventos, entrou na alimentação dos animais domésticos, foi lançada em quintais, despejada no rio Subaé, usada como aterro nas estradas ou simplesmente espalhou-se pelas ruas e praças. Por conta dessa exposição permanente, boa parte da população apresenta elevados índices de contaminação, “e a cidade apresenta a maior concentração de chumbo por habitante no planeta”.
“Nossa vida está comprometida”
Vítima da contaminação, o morador e ex-funcionário da Cobrac Augusto César Lago Machado sente na pele as problemas dessa exposição ao metal. Ele adquiriu patologias como neuropatia crônica com perda de movimentos no lado direito do rosto e tem câimbras nos membros superiores e inferiores.
“A nossa contaminação é irreversível. Tivemos nossa carteira profissional manchada por metais pesados e a vida comprometida”, diz.
De acordo com ele, ao longo desses 40 anos foram feitas muitas pesquisas e poucas ações. “Só agora com a vinda da Justiça Federal itinerante e há dois anos com o trabalho da frente parlamentar ambientalista é que houve mudanças e as ações passaram a ser efetivadas. As indenizações realizadas na área trabalhista calculadas foram um verdadeiro absurdo, em 500 e 1.500 reais por vítima”, afirma o ex-funcionário.
O grupo de trabalho criado pelos deputados verdes pretende propor uma ação conjunta com a Comissão de Direitos Humanos do Senado, que já levou à presidenta Dilma Rousseff, em maio deste ano, um dossiê com informações detalhadas sobre a tragédia ambiental que afeta as condições de existência de centenas de moradores da cidade baiana.
O grupo se prepara para uma visita à cidade que vai gerar um relatório que será votado na Comissão de Meio Ambiente, com uma série de propostas que serão encaminhadas aos órgãos competentes. “Muitas dessas sugestões serão transformadas em resoluções, em projetos de lei e sugestões ao governo federal”, diz o deputado verde.
À frente do grupo de trabalho formado no Senado, Walter Pinheiro (PT-BA) defende um debate com o “núcleo central” do governo diante da magnitude dos problemas que precisam ser enfrentados. Sugere, por um exemplo, um “PAC pela vida”, numa alusão ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que destaca os investimentos federais em infraestrutura.
Em entrevista à Agência Senado, o senador baiano afirmou que “durante anos a fio, por ignorância ou por falta de ação do poder público, as pessoas usavam as placas de chumbo para fazer pisos e paredes de suas casas. Também foram feitas avenidas e prédios escolares”.
Pinheiro explicou que, atualmente, o grau de contaminação é tão elevado que será preciso remover as pessoas e promover a reformulação completa de diversas regiões da cidade. Ele também cobra ações urgentes para salvar a vida dos que estão em estágio avançado de contaminação, conforme mostram estudos realizados no município.
O senador citou ainda estudos que indicam a necessidade imediata de destinar cerca de 300 milhões de reais para as ações de descontaminação da cidade, atendimento em saúde, indenizações e aposentadorias especiais.
Para Sarney Filho, “é muito difícil uma solução definitiva. Muitos malefícios foram causados, muitas mortes também e isso não há como solucionar. Temos que buscar a reparação moral e material para aqueles que foram atingidos e as famílias dos mortos. Temos que pensar em precaução para quem está nascendo.”
De acordo com o advogado Itanor Carneiro Júnior – que atua, junto da Procuradoria da cidade, em favor dos contaminados – entre os anos 60 e 90 a Cobrac atuava com cerca de mil funcionários nos três turnos de trabalho. Desses, o número de infectados é incerto, mas as consequências do contato com o minério são visíveis em parte da população que desenvolveu patologias causadas pela contaminação por chumbo e vive desassistida.
A lentidão para uma solução do caso, motivada pela falta de dados oficiais que comprove a doença causada pelo chumbo – e também a área total contaminada é o que impede que a justiça seja feita.
*publicado originalmente na Carta Capital.