É incômodo falar da barbárie imperial. Ela é inseparável da essência desumanizante do capitalismo.
A onda de violência que se abateu sobre Londres, Birmingham, Manchester, Liverpool e outras cidades inglesas e a brutal repressão que se seguiu foram tema de uma campanha de desinformação de âmbito mundial.
O primeiro-ministro Cameron, cujo prestígio tinha caído para um nível muito baixo, assumiu perante os dramáticos acontecimentos uma atitude musculada que visava a recuperar-lhe a imagem. Mudou de oratória, usando uma linguagem de terror. Simulou esquecer que os distúrbios começaram com um protesto pacífico motivado pela morte de um estrangeiro pela polícia. Falou como se as milhares de pessoas que participaram dos protestos fossem coletivamente uma horda de malfeitores e arruaceiros. Qual o objetivo: conquistar o apoio da classe média. Ameaçou indiscriminadamente milhares de cidadãos, sobretudo os imigrantes asiáticos e negros de bairros pobres.
A polícia inglesa sabe que os incêndios, o saque de lojas, a destruição de casas e automóveis foram de responsabilidade de uma insignificante minoria de jovens marginais, muitos dos quais já detidos. Mas Cameron generalizou, acompanhado pela mídia. Com poucas exceções (The Guardian, The Independent), os jornais ditos de referência, destacaram-se na exigência de medidas de exceção em reportagens e crônicas xenófobas semeadas de ameaças e insultos de aspecto racista. Os porta-vozes do grande capital (Financial Times e The Economist) não se limitaram a aplaudir a “firmeza e coragem” de Cameron na sua cruzada repressiva; sugeriram alterações à legislação penal e uma política mais dura contra os imigrantes das antigas colônias de Sua Majestade.
A indignação provocada pelos atos de vandalismo é legítima. Mas é inadmissível que tenha sido utilizada como pretexto para uma campanha que destila ódio, tutelada pelo primeiro-ministro com o apoio comovido e entusiástico da classe dominante britânica.
É significativa a adesão imediata das burguesias da União Europeia e dos Estados Unidos à versão inglesa dos acontecimentos. De Paris a Nova York, de Berlim a Madri, psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, sociólogos competiram em interpretações, cada qual mais disparatada e hipócrita, do comportamento dos participantes da onda de violência.
Abstiveram-se, porém, de comentar as condições subumanas em que vivem os moradores dos bairros degradados da periferia de Londres e de outras megalópoles britânicas. Omitiram também referências ao pântano de corrupção em que chafurda a troica imprensa-polícia-governo. Não aludiram sequer às mortes misteriosas dos jornalistas David Kell e o colega que, em 2003, destapou as mentiras de Blair sobre a guerra do Iraque, e do seu colega que trouxe a público o escândalo das escutas telefônicas – News of the World-Murdock.
Durante a onda de violência a mídia não recordou também a morte do imigrante brasileiro Jean de Menezes, abatido pela polícia londrina que o tomou por árabe.
O crescimento alarmante da desigualdade na Grã–Bretanha não preocupa as elites; aprova-o. Segundo o muito conservador Daily Telegraph, as fortunas dos britânicos mais ricos aumentaram 20% no último ano enquanto o número de pobres crescia. O diário liberal The Guardian prevê que o abismo entre os de cima e os de baixo será dentro de 20 anos igual ao existente na época da Rainha Vitória.
Cameron (e a oposição trabalhista), nas suas catilinárias contra os imigrantes do Terceiro Mundo, acusa-os de incapazes de se integrarem harmoniosamente numa sociedade civilizada e democrática.
Perfilha conceitos farisaicos, muito ingleses, de civilização e democracia.
Nos mesmos dias em que a onda de violência varria a Inglaterra, bombas da Royal Air Force caiam do céu sobre Trípoli e aldeias vizinhas, matando dezenas de crianças, mulheres e idosos. No Afeganistão, aviões também britânicos, integrados na força de ocupação da Otan, que ocupa o país, disparam quase diariamente mísseis contra civis sem armas que são mencionados nos comunicados como “terroristas da Al Qaeda”.
Dessa cadeia de crimes do imperialismo inglês, atuais e antigos (genocídios no Quênia e na Malásia, chacina de prisioneiros na Índia, na Austrália, na China, etc.).
É incômodo falar da barbárie imperial. Ela é inseparável da essência desumanizante do capitalismo.
O sistema afunda-se numa crise para a qual procura com desespero soluções na sobre-exploração dos trabalhadores, em guerras de agressão monstruosas e no saque dos recursos naturais de países pobres e indefesos, promovendo o terrorismo em escala mundial enquanto afirma combatê-lo.
Cameron está consciente da realidade. O seu discurso é o da hipocrisia imperial.
* Miguel Urbano Rodrigues é jornalista e escritor português. Escreve uma vez por mês para o jornal Brasil de Fato.
** Publicado originalmente no site Brasil de Fato.