Um conto infantil, a ser lido também pelos adultos.
Era uma vez, um caminho muito tortuoso, cheio de zigue-zagues, subidas íngremes, descidas abruptas, cercado de altas montanhas, rios gelados. Nos seus extremos, havia duas cidades e um vale entre elas, conhecido por todos como Vale da Travessia. Essas duas cidades em cada extremo do Vale eram conhecidas por cidade da Saúde e cidade da Doença. Para se atravessar esse caminho tortuoso, saindo da indesejável cidade da Doença e chegando à atrativa cidade da Saúde, era preciso muita coragem, tenacidade, fibra, vencer os vários obstáculos e armadilhas não só naturais como principalmente da natureza humana.
Continuando a nossa história, certo dia um casal, conhecido por todos como o sr. João Justo e sra. Maria Capaz, depois de tanto aguentar maldades e perversidades, pensou muito e resolveu mudar a situação: vamos atravessar o longo e difícil caminho que separa as duas cidades para vivermos uma vida melhor, com certeza mais justa e capaz. “Chega dessa doença, não dá para aguentar mais…”. Prepararam-se bastante e partiram decididos rumo à Saúde. “Chega de doença, chega dessa incapacidade de qualquer transformação, ninguém pode passar a vida paralisado, isto não é forma de viver”. Pensaram também: “se nós não fizermos nada, nada vai acontecer, e a doença vai tomar conta de tudo, isto é demais, chega, vale a pena brigar pelas causas justas e capazes. Sempre existe um outro caminho. Quando não existe um caminho, faz-se um novo caminho”. E foram à luta pelos seus desejos e projetos, pelo novo, e o novo é tudo, é desafio, é vida… Ou tudo, ou nada.
Logo no início da travessia, perceberam que a coisa não era fácil. “De cara”, apareceram uns espectros fantasmagóricos dizendo e fazendo bruxarias num som ensurdecedor: “não vão além, não vão além, vocês correm perigo, desistam, desistam”, insinuando que a velha fórmula da desistência e acomodação é a melhor solução, e que tanto facilita a doença. O antigo sentimento de repressão e culpa no modelo tradicional logo no início da caminhada fez-se ouvir. Taparam bem os seus ouvidos e prosseguiram pensando juntos: “é mentira, tudo mentira, pensam que somos eternamente criancinhas, isto é propaganda amestrada para enganar as pessoas”.
As trilhas eram estreitas, enlameadas e escorregadias. E o sr. João Justo e a sra. Maria Capaz prosseguiam a cada passo. Súbito, aparece uma espécie mal-encarada, ameaçadora, um bando de malfeitores encapuzados, parecendo urubus, e que tinham um cheiro característico de carniça, daqueles que só pensam no lucro, na injustiça, no privilégio, na doença. Aqueles que só vivem do lucro, da injustiça, do privilégio, da doença. “Voltem já, quem são vocês? Fiquem sabendo que nós temos a força das armas, nós temos o grande capital, nós mandamos em tudo, vocês pertencem a outra classe social, voltem já, saiam do caminho, voltem já para a doença. Povinho atrevido…” Apesar dos gritos horríveis, o sr. João Justo e sra. Maria Capaz não recuaram, e foram em frente, sempre acompanhados a cada passo por aqueles terríveis vultos que os ameaçavam cada vez mais, e quanto mais ameaçavam, mais histéricos ficavam. A cada curva, a cada subida, uma ameaça de tortura, mas a cada passo dado uma vitória, cada trecho conseguido um sucesso…
Então, lá no alto da montanha da Caveira da Morte, após ter passado pela floresta da Discriminação, o bando de malfeitores, sorrindo como corvos, preparou o golpe final: derrubar o sr. João Justo e a sra. Maria Capaz com uma grande armadilha, um enorme e fundo poço tapado com palha misturado ao barro, um disfarce para parecer a continuação do caminho, onde eles cairiam e ficariam prisioneiros até o fim de suas vidas totalmente isolados, alienados, marginalizados.
Um tremendo castigo! Quando o Sol começou a raiar, de repente, aconteceu o golpe final: barulho de corpos caindo e finalmente o silêncio. O sr. João Justo e a sra. Maria Capaz estavam no fundo do poço, feridos, pouco podendo fazer. Os vultos asquerosos se aproximaram da borda do poço e começaram a comemorar e a rir muito alto, com grande satisfação. Começaram a beber brindando mais um sucesso, quando o chefe da bandidagem, coberto de ricas joias, disse para os outros: “vamos jogar barro lá no fundo, a festa vai ficar completa, não vão mais existir estes e outros João e Maria. Aí sim, a bruxaria vai ficar perfeita…”.
Quanto maior a bebedeira, mais barro jogavam e mais baldes de barro jogavam, cantando num coro totalmente bêbado e desafinado que “ninguém pode com a nossa quadrilha, sempre armamos a nossa armadilha!”. E de balde em balde de barro jogado no fundo do poço, o sr. João Justo e a sra. Maria Capaz foram subindo pouco a pouco pelo barro jogado com furor e raiva, capitalizado pelo álcool do poder e do preconceito, usado para asfixiá-los e sufocá-los. O mesmo barro que foi usado para enterrá-los serviu para salvá-los. Pouco antes de chegar à borda, João e Maria levantaram-se e saíram correndo alegres estrada afora, salvos rumo à liberdade, deixando para trás aquele bando de alcoolizados, cruel e autoritário, agora totalmente perdidos diante de sua derrota, a caminho da Saúde, íntegros, felizes, justos e capazes como os seus próprios nomes.
Na entrada da cidade, viram um enorme letreiro iluminado e colorido, onde estava escrito: “Saúde é Justiça Social, é transformação, nela não cabem o lucro, o preconceito, a discriminação. Ela pertence a todos, a todos os Justos e Capazes”.
Todo caminho tem dificuldades, mas não é impossível atravessá-lo. Que tal formarmos um batalhão de srs. João Justos e sras. Maria Capazes para atravessarmos juntos e confiantes o caminho da Doença para a Saúde? Os espectros fantasmagóricos com a sua bandidagem industrializada certamente existem, mas é possível enfrentá-los. O caminho é este: não à coerção, sim à coerência. O sr. João Justo e a sra. Maria Capaz representam a população brasileira, os malfeitores desta e de outras histórias são sempre os mesmos: aqueles que só pensam em lucros e privilégios para nada mudar, aqueles que precisam da doença para enriquecer cada vez mais, e que continuam tentando impedir o caminho da Estrada da Vida.
Como esta história tem um final feliz, também desejamos o mesmo final para todos nós. E para comemorar, cantemos juntos esta bela melodia, num coral afinadíssimo: “Para que toda quadrilha tenha um triste final, a luta é sempre a Justiça Social…”.
Moral da história: a Doença é estagnação, a Saúde, a verdadeira revolução.
* Daniel Chutorianscy é médico, [email protected] .
** Publicado originalmente no site Correio da Cidadania.