“Dentro do princípio da ecogastronomia, o Slow Food apoia um novo modelo de agricultura, que é menos intensivo e mais saudável e sustentável, com base no conhecimento das comunidades locais”, explica a psicóloga e professora da PUC-RS, Isabel Carvalho.
“Há uma cultura equivocada da eficiência que relaciona um modo de vida do tipo workaholic como sinal de produtividade. Esta cultura da colonização da vida pessoal pelo trabalho está crescendo e produzindo mais doenças relacionadas ao estresse profissional do que efetiva produtividade”, declara Isabel Carvalho, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail. Segundo ela, a vida tumultuada da modernidade está interferindo na saúde da população, especialmente porque as pessoas não conseguem dedicar tempo para preparar uma alimentação saudável. “Quem hoje tem condições de investir um tempo significativo na seleção e preparo de alimentos frescos para si e sua família?”, questiona.
Na avaliação da pesquisadora, a indústria alimentícia relacionada às mídias determina “muito do que comemos”. Apesar disso, “o consumo tem se tornado um campo de luta política, de ações afirmativas e, portanto, um campo de possíveis contestações e dissidências em relação às políticas da indústria do alimento e das mídias que trabalham para vender esses produtos”.
Com base no conceito de Slow Food, Isabel Carvalho propõe uma ecogastronomia, quer dizer, a alimentação saudável deve ser entendida como um direito dos cidadãos. “A gastronomia como um direito humano já nasce em profunda sintonia com o movimento ecológico”, aponta.
Os temas desta entrevista foram aprofundados na palestra A ideologia Slow: da ecogastronomia à crítica da velocidade como vetor da globalização capitalista. Um movimento social sem pressa é possível, que aconteceu no dia 11 de agosto, às 17h30, na sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU.
Isabel Carvalho possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, especialização em Psicanálise pela Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro, mestrado em Psicologia da Educação pela Fundação Getúlio Vargas, neste mesmo Estado, e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que podemos compreender por ideologia Slow?
Isabel Carvalho – O ponto de partida do Slow é a valorização do alimento como cultura e a defesa dos saberes, modos de vida, formas de produzir e estilos de consumir relacionados a uma comida saudável, limpa e justa. O assim conhecido movimento Slow conjuga alimentação e gosto, mudança social e bem viver. A afirmação de identidades alimentares contra a padronização ganha materialidade nas chamadas “comunidades do alimento”. Trata-se de promover redes de agricultores, criadores, pescadores e produtores artesanais ao redor do mundo em torno de cadeias produtivas alimentares boas, justas e limpas. Slow atitude, ou “atitude sem pressa”, é parte deste estilo de viver, produzir e consumir, que valoriza a biodiversidade e a sociodiversidade, bem como um ideal de bem viver que considera o direito ao tempo e aos prazeres de uma vida simples, recusando-se a ideologia que associa aceleração, eficiência e consumo ilimitado como ideal de uma vida bem-sucedida.
Ao denunciar os dispositivos de sequestro do tempo e do empobrecimento da experiência humana, o movimento Slow critica um dos motores da sociedade da produção e consumo acelerados, que eu chamaria de ansiedade improdutiva. Uma espécie de combustível desta sociedade, este sintoma psicossocial é a contrapartida psíquica da urgência e do clima persecutório que nos envolvem, produzindo uma patologia social que tem feito das fobias e depressões um traço quase epidêmico dos tempos que vivemos. No contraponto, o movimento Slow defende ambientes de trabalho e de convivência menos coercitivos e, portanto, mais produtivos e criativos, bem como uma atitude reflexiva e serena face às nossas expectativas de aquisição e consumo.
Assim, o slow food entrou em estreita sinergia com lutas altermundistas pelo comércio justo, bem como com lutas socioambientais por modos de produção, produtos, produtores e consumidores ecológicos. Além disto, promete uma interessante fusão da dimensão prazerosa e sofisticada da ecogastronomia com os ideais de solidariedade e de convívio preconizados pelos defensores de uma vida simples ou “simplicidade voluntária”, como caminho para uma existência ecologicamente orientada.
IHU On-Line – E ecogastronomia, o que exatamente quer dizer?
Isabel Carvalho – Como se pode observar, entra na pauta Slow uma agenda de proteção a um patrimônio de bens biológicos, sociais e culturais em risco de extinção. Tomada nesta perspectiva, a gastronomia como um direito humano já nasce em profunda sintonia com o movimento ecológico, o que se enfatiza na expressão que representa este movimento: a ecogastronomia. A adição do prefixo “eco” à ideia da boa alimentação como um direito significou uma importante conexão. Carlo Petrini, fundador e presidente do movimento Slow internacional, declarou sua intenção ao fixar esta nova sintaxe. O movimento pretendeu estender o mesmo tipo de atenção que o ambientalismo dedica aos animais selvagens ameaçados às plantas e animais domesticados, incorporando as ideias de defesa de alimentos “ameaçados” pela redução da biodiversidade das espécies comestíveis em nossa dieta.
De acordo com o site Slow Food Brasil, o conceito de ecogastronomia “restitui ao alimento sua dignidade cultural, favorece a sensibilidade do gosto e luta pela preservação e uso sustentável da biodiversidade. Protege espécies vegetais e raças animais, contribuindo com a defesa do meio ambiente, da cozinha típica regional, dos produtos saborosos e do prazer da alimentação”.
IHU On-Line – Em que medida esse tipo de gastronomia está em sintonia com a sustentabilidade do planeta e da busca por uma alimentação de mais qualidade para os seres humanos?
Isabel Carvalho – A proposta desenvolvida por Carlo Petrini e os membros do Slow Food propõe um novo senso de responsabilidade na busca do prazer. É uma atitude capaz de combinar o respeito à diversidade das culturas do alimento. Neste sentido, poderíamos dizer que ele sugere cultivar o interesse não apenas por uma ecogastronomia, mas também o que poderíamos chamar de uma etnogastronomia. Trata-se de valorizar aqueles que lutam para defender os modos culturais de produzir e preparar os alimentos bem como a biodiversidade no mundo todo.
Ainda dentro do princípio da ecogastronomia, o Slow Food apoia um novo modelo de agricultura, que é menos intensivo e mais saudável e sustentável, com base no conhecimento das comunidades locais. Este é o único tipo de agricultura capaz de oferecer formas de desenvolvimento para as regiões mais pobres de nosso planeta.
IHU On-Line – Poderia explicitar em que medida se relacionam a crítica da velocidade como vetor da globalização capitalista e a alimentação inadequada que vem crescendo?
Isabel Carvalho – Esta relação tem sido apontada por estudos de saúde pública e nutricional em sociedades industrializadas. A velocidade e a superexploração do trabalho, bem como as condições de vida, que reservam aos trabalhadores mais pobres as maiores distâncias de casa e os piores meios de transporte, levam a uma vida com menor tempo para os cuidados humanos essenciais, como a alimentação. Mas o problema não se restringe as camadas mais pobres. Também os segmentos de trabalhadores melhor remunerados, que podem se localizar na cidade de forma mais próxima a seu trabalho e que têm acesso a meios de transporte mais confortáveis e rápidos, e pode investir recursos financeiros em uma boa alimentação, também estão sobrecarregados. Há uma cultura equivocada da eficiência que relaciona um modo de vida do tipo workaholic como sinal de produtividade. Esta cultura da colonização da vida pessoal pelo trabalho está crescendo e produzindo mais doenças relacionadas ao estresse profissional do que efetiva produtividade. Quem hoje tem condições de investir um tempo significativo na seleção e preparo de alimentos frescos para si e sua família? Pouca gente tem.
IHU On-Line – Como podemos compreender o paradoxal aumento da obesidade e a continuidade da fome no mundo? O que há de errado na alimentação global?
Isabel Carvalho – Parece que não há nada de paradoxal nisso, se pensarmos em alguns fatores que estão relacionados a este fenômeno. Em primeiro lugar, a desigualdade na distribuição da riqueza na sociedade, o que se expressa numa dieta pobre em proteínas e rica em carboidrato para populações pobres. Depois, temos também o fato de a má alimentação que leva à obesidade estar relacionada não apenas à ingestão demasiada de alimentos, mas à ingestão de alimentos caracterizados por altas calorias e vazios em nutrientes, tipicamente alimentos prontos e industrializados, refrigerantes e outros itens que são de rápido consumo e baratos. A má alimentação não é privilégio de uma classe social; ela pode acontecer em todas as classes sociais. Mas penso que as populações mais pobres têm menos alternativas para investir tempo e recursos numa alimentação saudável.
IHU On-Line – Quem determina o que consumimos, o que comemos, o que está à disposição no supermercado?
Isabel Carvalho – Há uma indústria do alimento relacionada às mídias que promove estes alimentos e que determina muito do que comemos. Mas há também o poder de autodeterminação e de crítica do consumidor. O consumo, hoje, tem se tornado um campo de luta política, de ações afirmativas e, portanto, um campo de possíveis contestações e dissidências em relação às políticas da indústria do alimento e das mídias que trabalham para vender esses produtos. O movimento Slow é um exemplo, mas não o único. Os movimentos de consumidores que valorizam produtos ecológicos, por exemplo, têm forçado os supermercados a incluírem estes produtos em sua cesta de opções. Os consumidores que buscam produtos sem lactose ou sem glúten são outro exemplo.
Ainda estamos longe da situação ideal, porque nestes casos se trata de produtos mais caros e em pequena proporção dentro das grandes redes de supermercados. De qualquer modo, as mudanças são um indicador de que o mercado está atento para os movimentos e as preferências dos “consumidores alternativos”. Para compreender este fenômeno, vale a pena ler o excelente trabalho da professora Julia Guivant, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que tem pesquisado a relação entre consumo e mercado de orgânicos em grandes redes de supermercados.
IHU On-Line – Qual seu ponto de vista sobre a ligação entre personagens infantis a alimentos industrializados e altamente calóricos?
Isabel Carvalho – Sou a favor de um controle da mídia relativo à propaganda de alimentos aos quais você se refere (junk food) para crianças. As crianças não têm ainda capacidade crítica para decidir e são induzidas a uma má alimentação por personagens e recursos midiáticos que são parte de campanhas publicitárias da indústria de alimentos voltadas a conquistar segmentos infantis. Penso que deve haver uma regulação que imponha responsabilidade social e cuidado com a saúde pública para a indústria de alimentos.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.