Genebra, Suíça, 6/3/2012 – As manifestações sociais de indignação e de exigência de mudança não são negativas nos momentos de crise que vivemos, afirmou o intelectual, diplomata e político brasileiro Rubens Ricupero, em entrevista à IPS. O ex-secretário-geral (1995-2004) da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) prevê que a recuperação da crise econômica vai demorar de quatro a cinco anos.
Ricupero, que possui longa carreira na diplomacia brasileira, onde também foi ministro, considera que a paralisia de numerosas negociações multilaterais, com a Rodada de Doha na Organização Mundial do Comércio (OMC), se prolongará por um tempo. A causa desta paralisia se relaciona com um fenômeno em curso: o deslocamento do poder mundial do Atlântico Norte para o Pacífico asiático. Nestas circunstâncias, é difícil obter consensos sobre temas profundos nos fóruns multilaterais, afirmou Ricupero.
IPS: Qual é o seu diagnóstico da situação global?
Rubens Ricupero: Nos países industrializados, não creio que no curto prazo possa haver muita esperança de uma recuperação. Os europeus ainda não têm nem mesmo uma estratégia para enfrentar os problemas dos países endividados. Será necessário bastante sofrimento antes de chegar a isso. O crescimento praticamente desapareceu na Alemanha, o país que conta. Em outros há recessão, como Itália e Holanda. Parece que este será outro ano perdido para a Europa.
IPS: E nos Estados Unidos?
RR: Muito vai depender da eleição presidencial de novembro. Não se pode fazer uma previsão, mas me arrisco a dizer que o presidente Barack Obama será reeleito. A economia norte-americana começa a apresentar indícios de recuperação, lenta e insuficiente na criação de empregos, mas tem condições de ganhar algum ritmo e conteúdo nos próximos anos.
IPS: Um panorama desanimador, então.
RR: Neste ano e no próximo não teremos grandes diferenças quanto à dicotomia que vivemos nos últimos tempos. A economia do sul continua crescendo, particularmente na China, Índia e outros países asiáticos, e em consequência também em países latino-americanos e do Oriente Médio. Não vejo no horizonte nenhum perigo muito grande de uma catástrofe como a de 2009, com a queda de Lehman Brothers, nem uma recuperação muito folgada.
IPS: Será uma longa espera?
RR: Como ocorreu nos anos 1930, essa recuperação tardará. A plena recuperação da economia mundial como um todo não acontecerá antes de quatro ou cinco anos.
IPS: Também na América Latina?
RR: Não. Isto não significa que outras regiões não possam se recuperar antes. É preciso considerar que nada década de 1930, com exceção de alguns casos, como da Argentina, que sofreu mais por sua dependência das exportações para a Grã-Bretanha e por sua decisão de tentar pagar a dívida, os demais países latino-americanos tiveram uma boa situação, como Brasil, Colômbia, Chile, Peru e México.
IPS: O panorama atual é parecido?
RR: Hoje vejo duas diferenças a nosso favor. Primeiro. Em nos anos 1930 não havia o atual fenômeno das economias de China, Índia e outros países asiáticos. O mundo dependia basicamente dos países industrializados. A segunda diferença é que os latino-americanos já começavam aquela década com um endividamento externo muito forte. Dessa maneira, a grande maioria dos países da região não podia pagar seus compromissos. Desta vez estamos começando a década em uma situação incomparavelmente melhor. Com boas reservas, baixo nível de dívida e uma situação interna mais favorável em termos de crescimento, de emprego e de melhoria de índices sociais. Falo da situação em países como Brasil, Chile, Argentina e Peru, não tanto dos que dependem mais diretamente do mercado norte-americano, como os países do norte da região.
IPS: As negociações internacionais tropeçam em sérias dificuldades em questões como desarmamento, comércio e meio ambiente. Como vê o sistema multilateral?
RR: Muito mal, com certeza, praticamente em todos os grandes temas há uma paralisia.
IPS: As razões?
RR: Existem dois fenômenos que se sobrepõem. Um é de conjuntura: a crise econômica que cedo ou tarde terá que desaparecer. Outro é mais profundo. Há anos que assistimos uma mudança do eixo da economia mundial e da demografia mundial, do Atlântico Norte para o Pacífico asiático. Este é um fenômeno que o grande historiador francês Fernand Braudel (1902-1985) chamaria de uma tendência secular, de longo, larguíssimo prazo, como foi a mudança do eixo do comércio mundial do Mediterrâneo para o Atlântico no Século 16, no momento das grandes descobertas.
IPS: Esse deslocamento do poder é irreversível?
RR: Não vai parar. Pelo contrário, as crises de conjuntura o aceleram, o reforçam. Na medida em que os Estados Unidos se enfraquecem economicamente, é óbvio que isto favorece muito o acúmulo de reservas e de poder financeiro de países como a China. É nesses momentos da história, muito raros, que ocorrem uma vez a cada dois ou três séculos, que ocorre uma mudança na distribuição mundial. E nesses momentos é difícil haver consenso para enfrentar as questões mais profundas nos fóruns multilaterais.
IPS: Dê mais detalhes desse fenômeno.
RR: Até recentemente o mundo tinha nos Estados Unidos o árbitro que decidia. Era a potência hegemônica que garantia a ordem econômico-liberal. Desempenhou este papel desde o final da Segunda Guerra Mundial com a reorganização do sistema econômico e financeiro – a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e do antecessor da OMC, o Acordo Geral de Comércio e Tarifas Alfandegárias (GATT) – e do sistema político por meio da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU). Durante o longo período da Guerra Fria, os Estados Unidos continuaram sendo o país que garantia a produção de resultados nas grandes conferências das quais saíram os chamados regimes internacionais. Tanto é assim que, quando Washington se abstinha, como no caso do direito do mar, o assunto não seguia adiante.
IPS: Qual é a nova realidade?
RR: Hoje os Estados Unidos começam a reavaliar suas posições, a sentir-se mais chamado para os problemas internos, a mudar sua estratégia militar. Os norte-americanos estão trasladando a ênfase do Oriente Médio, dos temas islâmicos, para a Ásia. E começam a se dar conta de que o grande adversário estratégico, no longo prazo, é a China, não a Al Qaeda, nem os islâmicos. Então, neste processo não aparece ninguém que possa desempenhar esse papel de árbitro. É o que se vê nos episódios da Síria no Conselho de Segurança da ONU. E também nas outras grandes negociações internacionais.
IPS: É uma passagem de poder iminente?
RR: Não, não vejo no curto prazo a possibilidade de mudança. Se Obama for reeleito estará mais atento aos problemas internos, como vem fazendo. E chineses e indianos ainda têm desafios muito grandes em seus países. Não estão prontos, nem querem assumir esse peso de responsabilidade. É um momento muito difícil, que corresponde à definição de crise do grande pensador marxista italiano Antonio Gramsci (1891-1937). Dizia Gramsci que a crise é o momento intermediário em que o mundo velho acaba morrendo e o novo tem dificuldade para nascer. Nesta etapa, todo tipo de sintoma de morbidez sobe à superfície. É o que estamos vivendo. Inclusive o fato de que os países industrializados ainda começam a discutir a crise do capitalismo. Mas não encontram uma saída porque são as mesmas pessoas que criaram a crise e continuam dando as cartas.
IPS: Acredita que haverá reação?
RR: Vamos ter uma história muito agitada nos próximos anos. Não no sentido de um conflito mundial, mas nesse tipo de coisas que estamos vivendo: insatisfação, indignação, desejo de mudança. O que não é negativo, porque nunca se deve perder de vista que a história se move em momentos de dificuldades. Não chego ao ponto de dizer, como os marxistas, que a violência é que faz mover a história. Mas a insatisfação sim. É a raiz das grandes mudanças mundiais, como a Revolução Francesa, a Reforma religiosa, o Renascimento. Havia, então, uma insatisfação com a vida que se levava.
IPS: E atualmente?
RR: Essa insatisfação social pode ser altamente criativa. É perturbadora para os que vivem nesses momentos, pois é algo que questiona todos os valores, todos os hábitos, mas é criativa. Não creio que seja ruim as pessoas não se sentirem satisfeitas com um sistema baseado na injustiça e na falta de igualdade. Há que se rebelar contra o que fizeram e continuam fazendo os banqueiros. Por isto digo: vivas aos homens e às mulheres que lutam por uma economia com mais igualdade, justiça e equilíbrio. Não há que se resignar a isso.
IPS: A crise pode afetar a sobrevivência das organizações multilaterais?
RR: Particularmente, a ONU demonstrou uma grande flexibilidade. Cito dois episódios. Em 1971, quando a China comunista foi admitida e passou a ser membro permanente do Conselho de Segurança, se dizia então, na época posterior à Revolução Cultural, que haveria uma grande instabilidade no mundo. E não foi o que ocorreu. O segundo: o fim do comunismo produziu uma mudança total no mapa do mundo. A União Soviética se desfez em não sei quantos pedaços. A federação iugoslava também. E tudo isso aconteceu com seu grau de violência relativamente contido, menos no caso dos iugoslavos, por outras razões. Nesses dois momentos o que se viu foi que as organizações, em particular as da ONU, souberam acomodar-se às mudanças. O ruim é quando a organização é tão rígida que não pode se amoldar e morre. A ONU tem essa flexibilidade, o que às vezes causa muita perplexidade e insatisfação.
IPS: Acredita que as organizações financeiras, como FMI, Banco Mundial e OMC, sobreviverão intactas?
RR: Não. Espero que esse movimento de mudança modifique não só a economia interna dos países, em um sentido que a afaste desse fundamentalismo de mercado, mas que também mudem as instituições que representam esse espírito fundamentalista. E para isto o papel principal caberá às pessoas no mundo – não somente no sul –, que têm consciência desse problema, de que não se pode continuar com uma organização que leva a um crescimento maior da desigualdade. Envolverde/IPS