Revisores são seres invisíveis que se valem de jornais e editoras para corrigir os deslizes dos escritores. Porque os escritores, frequentemente, desrespeitam as leis fundamentais da gramática. Eu mesmo, por muito tempo, tive como revisor voluntário dos meus textos um erudito da língua que me enviava periodicamente, por puro amor à língua, relatórios detalhados dos meus erros.
Desse revisor voluntário tenho apenas uma queixa: ele nunca disse uma só palavra sobre a substância mesma dos meus artigos. Não lhe importavam as coisas que eu escrevia. Importava-lhe se eu as escrevia com as palavras certas.
Para me consolar, eu repetia as palavras de Patativa do Assaré: “Mais vale escrever a coisa certa com as palavras erradas que escrever a coisa errada com as palavras certas…” Até lhe dediquei uma pequena parábola. Eu, convidando meus amigos para tomar uma sopa que eu mesmo faço. Eles vêm, tomam a sopa e gostam. Mas um intruso, não convidado, toma a minha sopa, nada diz sobre a sopa, mas reclama que a tigela estava lascada…
Tenho tido experiências com revisores atentos, sensíveis, competentes, que não só corrigem meus erros como também me fazem sugestões de como melhorar o meu estilo. Mas tenho tido também experiências desastrosas. E isso porque os revisores têm um poder terrível. Basta que mudem uma simples palavra…
Saramago escreveu um livro sobre um revisor que, cansado de sua função de apenas revisor, resolveu interferir no texto. No lugar onde o autor havia escrito um “sim”, ele resolveu deletar o “sim” e substitui-lo por um “não”. O resultado foi que a história do cerco de Lisboa teve de ser completamente reescrita.
Houve um livro que escrevi, todo ele baseado na distinção entre “história” e “estória”, distinção que os gramáticos, donos da língua, desconhecem, por saber muito sobre letras e sílabas e pouco sobre sentidos. Resolveram, por conta própria, eliminar do dicionário a grafia “estória”. Tudo agora é “história”. Mas Guimarães Rosa sabe que isto está errado e até escreveu: “A estória não quer se tornar história”.
São duas coisas diferentes. História é o tempo onde as coisas acontecidas não acontecem mais. Estória é o tempo onde coisas não acontecidas acontecem sempre.
Pois o revisor do meu livro, mais atento às ordens do dicionário, livro onde se encontram as palavras e sentidos certos, eliminou as “estórias” que eu havia escrito, substituindo-as por “histórias”. Ficou totalmente sem sentido. O revisor disse que abacaxis e pitangas eram a mesma coisa.
Esse mesmo revisor achou por bem corrigir minha tradução de um verso de Eliot. “The inner freedom from the practical desire…”. Minha tradução: “A liberdade interior do desejo prático…” Coisa de velhice: estamos livres da compulsão de fazer coisas práticas. Podemos nos entregar à vagabundagem. Pois o dito revisor, certamente movido por sua ideologia de esquerda, não podia imaginar que essa liberdade da compulsão do fazer fosse coisa decente. Alterou, então, a minha tradução para “a liberdade interior para o desejo prático…”
Na versão do revisor, todo mundo ficou condenado à compulsão do fazer. Culpa minha. Acreditei no revisor. Não conferi. Resultado: o livro ficou um “non-sense”. Seu destino, o lixo. Mas as palavras estavam de acordo com o dicionário.
Outro revisor ficou horrorizado com a fala de um ignorante chamado Riobaldo. Era português errado, horrível. Tratou de corrigi-la, e o Riobaldo ficou falando como se fosse uma professora de português. Ainda bem que, nesse caso, não confiei no revisor e não perdi o livro.
* Rubem Alves é educador, escritor, psicanalista e professor emérito da Unicamp – [email protected].
** Publicado originalmente no Portal Aprendiz.