O caminho macroeconômico seguido pela Argentina foi, em boa medida, determinado pelas circunstâncias adversas do biênio 2001-2002, portanto, com um limitado raio de manobra. De todo modo, o novo regime argentino atendeu bem aos principais problemas com que a Argentina se defrontava no contexto da época.
Em linhas gerais, pode-se afirmar que o regime macroargentino está baseado em alguns pilares, como uma taxa de câmbio competitiva (alta) e estável, superávit fiscal e na conta-corrente do balanço de pagamentos, e uma política monetária que procurou ao mesmo tempo evitar a apreciação da taxa de câmbio real, acumular reservas internacionais, facilitar a recuperação da liquidez e limitar mediante ações de esterilização o efeito monetário expansivo gerado – a partir de meados de 2002 – pela acumulação de reservas.
Neste contexto, um elemento a mais que foi adicionado neste modelo foram as retenções, as quais consistiam em taxas nas exportações tradicionais, em particular produtos agrícolas e petróleo. Na prática, a introdução das retenções acabou por criar algo análogo a um sistema de taxas de câmbio múltiplas, o que contribuiu para reduzir o pass-through de desvalorizações para os preços de bens-salário, mas também para capturar parte da renda obtida por estes setores tradicionalmente competitivos a partir da taxa de câmbio real competitiva.
O objetivo explícito do referido regime era – diante dos desastrosos efeitos da crise do fim da conversibilidade – maximizar o crescimento econômico e a geração de empregos. O câmbio competitivo impulsionaria, neste tocante, as exportações, permitindo, com isso, a expansão da renda doméstica.
Ademais, ao desestimular as importações e aumentar a competitividade das exportações, a política cambial poderia dar fôlego à indústria argentina, muito prejudicada durante os anos de câmbio apreciado da conversibilidade. Neste sentido, cabe destacar que, neste regime macroeconômico, a estabilidade de preços não é considerada condição sine qua non para maiores taxas de crescimento, ficando, portanto, subordinada ao objetivo de estimular a geração de empregos e o crescimento econômico.
No período 2003-2008, a economia argentina atingiu seus principais objetivos: as taxas de crescimento econômico – meta prioritária do governo – foram elevadas durante todo este período, excetuando-se apenas o ano de 2009, quando, em função da crise internacional, houve uma leve queda do PIB.
Cabe acrescentar que, durante este ciclo de crescimento, a indústria argentina voltou a se desenvolver. Como a indústria sofreu muitas perdas durante o período de crise da conversibilidade, fala-se hoje que a Argentina está em um processo de reindustrialização. Entre outras coisas, as exportações de origem industrial aumentaram em quantum a uma taxa média de 12% entre 2002 e 2007.
Entretanto, como nem tudo são flores, o maior problema que ronda a economia argentina chama-se inflação, que, nas estimativas independentes, já se encontra na casa dos 20%-30% anuais. Nesse caso, o impacto de uma desvalorização cambial sobre a inflação pode ser imenso. Assim, corre-se o risco de dar a partida em uma espiral ascendente de preços em que trabalhadores e empresários tentam defender as suas rendas. O resultado pode ser uma disparada do processo inflacionário, de modo que a desvalorização nominal sequer resulte em desvalorização real da taxa de câmbio. Além disso, diante de uma inflação ascendente e já na casa dos 20%, há sempre o risco do processo de indexação informal, o qual, uma vez em curso, tornará mais difíceis os esforços anti-inflacionários no futuro.
Os governos de Néstor e Cristina Kirchner utilizaram, claramente, as macropolíticas, ou seja, estabeleceram algum equilíbrio entre utilização e disponibilidade de recursos, de forma tal que permitiu mobilizar o apoio de uma coalizão de forças suficientemente poderosa para sustentar o governo no poder, promovendo a indústria e sustentando o poder de compra dos trabalhadores.
A realidade econômica que pode se configurar num futuro próximo, caso a inflação mantenha-se em uma situação crescente, é de um possível impasse político-econômico, no qual trabalhadores, industriais e ruralistas buscarão preservar a sua renda. Diante deste panorama, haverá a necessidade de ajustamentos, no entanto, ainda não está claro qual e que tipo de aliança sairá vencedora deste possível contexto turbulento e, tampouco, a estratégia de política econômica que prevalecerá no praticamente reeleito governo de Cristina Kirchner, está aí um grande desafio para os próximos anos para a economia argentina.
* Paulo Daniel é economista, mestre em economia política pela PUC-SP, professor de economia e editor do blog Além de Economia.
** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.