Conversa tensa ouvida entre dois soldados do cordão da Polícia Militar que acompanharam uma das Marchas da Liberdade, realizada na avenida Paulista, em São Paulo (e em mais de 40 cidades pelo país) neste sábado (18). A caminhada, que partiu do Masp, parou momentaneamente a rua da Consolação para um ato e seguiu em direção à Vila Mariana, reuniu centenas de ativistas pela descriminalização da maconha, ambientalistas, cicloativistas, militantes pelos direitos de gays e lésbicas, feministas, entre outras pessoas legais.
– Não, não, não!
– Como não?
– Não deixa fazer isso!
– Por que não? Quem pede, paga pra ver.
– Mas se você deixar sua mulher salgar demais a carne antes de ir pra churrasqueira, o sal vai queimar todo e vai ficar estranho.
– Ah, tá.
Com o tempo, essas passeatas vão ser tão comuns quanto ir para o boteco, como acontece em alguns países. O paulistano está perdendo a vergonha de tomar a rua. E, espero, as instituições públicas acompanhem essa mudança, esquecendo as práticas desenvolvidas em anos mais pesados e que, até hoje, se mantém.
Quem sentiu na pele a repressão das borrachas, da pimenta e do lacrimogênio no dia 21 de maio, antes do STF ter colocado ordem na lojinha e dito que protestar pode, está satisfeito com conversas sobre picanha e maminha.
Mas falta muito ainda para que a massa da população perceba a importância de tudo isso. A situação do trânsito é ainda mais importante do que o direito de expor as reivindicações nesta capital que tem o orgulho (idiota) de ter quase dois habitantes por automóvel. Exagero? Não preciso nem citar os palavrões ouvidos hoje na Paulista da boca de motoristas, de Fuscas a BMWs. É só lembrar que quando uma favela é invadida por uma enchente de esgoto ou quando uma ocupação ilegal é removida a bala e moradores, cansados de tanto reclamar e não serem escutados, resolvem ocupar uma avenida, o assunto que vai para a mídia é o trânsito e não o problema que gerou o protesto.
Há alguns veículos de comunicação que dão manchetes para o congestionamento e relegam ao segundo plano a tragédia humana que ocorreu. Colocam depoimentos de motoristas reclamando que perderam a hora para alguma coisa, xingando os “baderneiros”, mas não se ouve os moradores. Eles aparecem na tela para mostrar o “drama” e desaparecem quando já deram audiência suficiente. “Ah, mas o congestionamento afetou a vida de mais gente, por isso é a notícia mais importante.” O conceito de relevância jornalística se perde em justificativas como essa, desumanizando a situação. Os dois fatos são notícia. Milhões de pessoas conseguiriam se reconhecer nessas histórias se elas fossem retratadas corretamente pela imprensa. E reconhecendo-se, encontrariam no outro, distante, um companheiro para mobilização.
Nós precisamos nos sentimos donos da cidade em que vivemos e inverter as prioridades. Às vezes, entender que chegar um pouco mais tarde no compromisso pode significar muito para aqueles que estão batalhando por seus direitos. E que, muitas vezes, você também será o beneficiário da luta deles. Infelizmente, acreditamos que somos ocupantes provisórios. Caso tivéssemos essa necessária sensação de pertencimento, participaríamos realmente da vida da metrópole e das decisões dos seus rumos. Iríamos todos para a rua.
Fico feliz em ver manifestações como a de hoje, no Centro, começarem a ser encaradas como parte do cotidiano. Mas espero o dia em que a Periferia vai acordar de uma letargia imposta por quem dela se beneficia. Nesse dia, vai dar cãibra do rosto de tanta alegria.
* Publicado origianlmente no Blog do Sakamoto.