Aos 84 anos, Ariano Suassuna reflete: “Tenho a vaidade de ser professor”. O autor de romances, peças e poesias aclamados pelo público e pela crítica mantém atualmente uma rotina especial como secretário do governo de Pernambuco. Estabeleceu a missão de levar suas aulas-espetáculo por todo o Estado. O mestre conta que, das 128 apresentações em 67 municípios, por teatros, auditórios, favelas, praças e ginásios, a que mais gostou foi a do Presídio Feminino do Bom Pastor, no Recife. Gostou tanto que voltou na última terça-feira de agosto.
Nesses espetáculos, Suassuna atua como um professor sentado na mesa no canto do palco, de onde faz as introduções a cada apresentação de música e dança. Todas as cinco aulas que idealizou tratam de um tema que defende com generosidade: a cultura brasileira. Em 2008, foi convidado pela direção do presídio a apresentar Nau, com seu roteiro repleto de danças africanas, indígenas e portuguesas, coreografias que ajudam a compreender a origem das nossas manifestações. A recepção das detentas foi tão gratificante, lembra o escritor, que, quando finalizou a sua nova aula, Chamada ao Piano, pediu para voltar ao presídio feminino. “Mesmo correndo o risco de parecer oferecido.”
Suassuna é muito querido, isso sim. Entre as presas é uma celebridade, um ídolo com torcida familiarizada. Ao chegar no horário combinado no Bom Pastor, foi recebido com palmas, gritos, beijos nos bebês de colo presentes na unidade prisional. Uma festa com a participação de praticamente todas as 625 detentas, no pátio central.
“Gostei muito quando estive aqui, em 2008”, inicia. “Para mim, foi a melhor aula que dei.” Em seguida, arranca algumas gargalhadas ao explicar, com versos de poeta popular, o seu temor em retornar àquele público. Nunca vi homem valente, que não fosse ferreiro/ Homem de fala mansa, que não fosse traiçoeiro/ O segundo prato, com o gosto do primeiro.
Em Chamada ao Piano, ele anuncia gravações de composições feitas por pianistas pernambucanos no fim do Século 19 e primeira metade do 20. “Não existe música velha ou nova. O que existe é música boa e música ruim.” Uma valsa de Euclides Fonseca abre o espetáculo, todo coreografado por Maria Paula Costa Rego, que também dança na companhia de quatro bailarinos formados em grupos populares.
A cada música, uma nova coreografia no palco que Suassuna chama de circo. “Tinha vontade de ser palhaço na infância e, quando fui convidado para ser secretário, pedi ao governador para montar esse circo e apresentar meu espetáculo por aí.” O segundo número apresentado é um tango brasileiro. “Em nada parecido com o tango argentino. O nosso tango é a origem do choro.” Na sequência, o público ouve e vê uma quadrilha, um maxixe, um maracatu, uma marcha carnavalesca e, ponto alto da apresentação, o Choro Número 5, de Capiba. A leveza e a graça do bailarino Gilson Santana, o mestre Meia-Noite, arrancaram gritos, aplausos e assobios em cena aberta em três momentos.
Antes de sair do palco, o escritor assistiu a uma apresentação das detentas. As alunas da Escola Olga Benário (que funciona no presídio) leram poesias dedicadas a Suassuna e são acarinhadas pelo homenageado, um cavalheiro que beija a mão das damas. O autor e sua plateia preferida têm uma relação que escapa às explicações apressadas.
A visita a presídios, entre eles o próprio Bom Pastor, faz parte da infância de Suassuna. Começou em 1930, quando o primo legítimo de sua mãe, João Dantas, ficou preso na Casa de Detenção do Recife depois de matar João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, então presidente da Paraíba, em 26 de julho daquele ano. O futuro escritor, então com três anos, afirma lembrar-se dessa passagem. O crime de Dantas foi passional, mas entrou para a história do Brasil. João Pessoa morreu por ter dado publicidade a cartas íntimas, trocadas entre Dantas e sua namorada, Anayde Beiris. As cartas foram obtidas pela polícia, que invadiu o escritório de Dantas e arrombou seu cofre.
João Pessoa era candidato a vice-presidente da República e, sobretudo, adversário político dos Suassuna. Sua morte foi usada como estopim da Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder. Dantas foi preso. Anayde Beiris foi para o Instituto Bom Pastor (onde hoje funciona o presídio feminino) e também recebeu a visita do pequeno Suassuna. No dia 6 de outubro, Dantas é degolado em sua cela. No dia 22, Anayde Beiris, então com 25 anos, tira sua própria vida com veneno.
A sequência de tragédias a envolver a família Suassuna não para por aí. O deputado federal João Suassuna, pai de Ariano, foi morto em outubro daquele ano, na capital da República, baleado nas costas, na tradição covarde dos crimes de encomenda. Parte em vingança pela morte de João Pessoa, parte por causa da violência que marcou a revolução. No bolso de João Suassuna, uma carta endereçada à sua mulher pedia para que nenhum dos seus nove filhos vingasse sua morte.
O Bom Pastor funciona como unidade de triagem, na qual as mulheres aguardam julgamento. A maioria (57%) responde por tráfico de drogas. São jovens entre 22 e 35 anos, de acordo com os dados da Secretaria de Ressocialização.
Iara Pradines, 50 anos, está presa há quatro anos por posse de pasta-base de cocaína. O que ela acha da visita de Suassuna? “As mulheres aqui vivem uma fase difícil de suas vidas. Todas nós sabemos que erramos, mas quem não precisa de apoio para sair do fundo do poço? Ariano nos dá atenção, nos oferece conforto. Aqui, o que mais ouvimos é que não temos solução. Algumas vezes, até a família nos abandona. Ele vem aqui nos mostrar que não estamos excluídas.”
* De Recife.
** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.