Pode-se considerar o dia 12 de maio como o inicio da retomada das mobilizações de estudantes no Chile. Justamente nessa data foi convocada a primeira manifestação nacional dos universitários afiliados à Confederação de Estudiantes de Chile (Confech) e a partir dela os estudantes irromperam nos telejornais como uma voz renovada e poderosa contra a situação crítica em que se encontra a educação no Chile.
A impressionante adesão que foi adquirindo o movimento deve-se a uma constelação de fatores que possuem, por uma parte, uma dimensão histórica acalentada na forma de uma frustração acumulada através de duas décadas. As causas desta insatisfação são variadas e muitas delas – que já se haviam apresentado nos consecutivos governos da Concertación – representam o ponto de saturação de um desconforto acrescentado desde a aplicação do modelo neoliberal no país, em meados dos anos 1970. Mas, por outra parte, o conflito dos universitários foi adquirindo uma relevância cada vez maior em função da política errática derivada da atual administração de centro-direita.
Em efeito, desde que Sebastián Piñera assumiu o governo, as expressões de descontentamento e rebeldia têm adquirido uma crescente força e persistência em vastos setores da cidadania. À decepção e cansaço das pessoas, somam-se todas as promessas descumpridas pelo atual mandatário, que parece encarnar bem mais uma linha de continuidade – no pior sentido – com as administrações anteriores que tanto reprovava. Contrariando tudo aquilo que foi amplamente propagado durante sua campanha presidencial – usando o slogan da “força da mudança” –, Piñera e seus correligionários têm se mostrado absolutamente entorpecidos e incompetentes para formular uma política de Estado orientada a resolver os árduos e persistentes problemas de justiça social, exclusão e desigualdade que ainda imperam no Chile.
É precisamente a ausência de uma vocação de estadista e o abandono de uma perspectiva do público em diversos âmbitos, aquilo que tem sido o foco principal dos questionamentos à gestão do presidente e sua coalizão de centro-direita. Formatado como um governo de empresários, os problemas de “conflitos de interesses” representam a marca predominante do seu mandato(1). Mas não só isso. O desprezo por tudo aquilo que envolve o público se faz evidente também entre os membros do governo que, formados sob os preceitos do neoliberalismo, sempre consideraram que o Estado constitui a máxima demonstração da ineficiência e que, pelo contrário, pensam que o bem-estar das pessoas é uma consequência direta do esforço e iniciativa de cada um e não um resultado das políticas públicas.
A percepção da cidadania com respeito à falta de preocupação pelos assuntos públicos tem se somado a uma constelação de dívidas pendentes herdadas: manutenção do sistema binominal e de exclusão das minorias, administração do modelo neoliberal, privatizações, desregulação das atividades e interesses do setor privado, flexibilização e precariedade laboral, sistema de pensões com capitalização individual, endividamento generalizado, deficiência dos serviços educativos e de saúde, uma legislação ambiental insuficiente que não consegue frear a ação predatória das empresas, etc.
Desta maneira, a carência de uma política de Estado em áreas como educação, saúde ou previdência social tem gerado um amplo sentimento de rejeição por parte de estudantes, professores, funcionários da saúde, devedores hipotecários, servidores públicos, aposentados, consumidores, povos originários, ecologistas e da cidadania em geral(2). As passeatas, marchas e protestos, que em suas origens eram apenas mobilizações por demandas setoriais, se transformaram em pouco tempo num grande movimento nacional que questiona profundamente as bases do modelo econômico e social sobre o qual vem se instaurando o “milagre” chileno, a saber: a desregulação das formas como opera o capital financeiro e as empresas; a redução do papel desempenhado pelo Estado na promoção do bem-estar coletivo; a aplicação de um sistema tributário regressivo que privilegia as grandes fortunas em detrimento do conjunto dos contribuintes; a desmedida concentração da propriedade e da renda; a entrega dos recursos naturais ao capital transnacional; ou a consagração de valores individualistas e de acirrada concorrência entre as empresas e as pessoas. Desde os trabalhadores do cobre que se opõem à privatização dos recursos minerais, passando pelos devedores hipotecários e as famílias afetadas pelo terremoto, que ainda se encontram morando em tendas e barracas improvisadas, até os estudantes secundários e universitários que exigem uma educação pública gratuita e de qualidade ou de grupos que lutam contra a construção de cinco represas na região sul (HidroAysén), todos em conjunto se articulam em torno de um projeto que ponha fim à política vigente, a qual tem aprofundado os estigmas de desigualdade e discriminação entre os chilenos.
Incapaz de resolver tais exigências, o atual mandatário tem perdido em poucos meses toda e qualquer credibilidade, inclusive entre seus eleitores. Uma dessas promessas foi melhorar a qualidade do ensino, o que certamente não tem acontecido. Pelo mesmo, no último ano estouraram inumeráveis protestos pela qualidade do Ensino Médio e Superior, e centenas de colégios, institutos e universidades têm sido ocupados pelos estudantes. Durante mais de cinco meses, milhares de estudantes se encontram marchando perseverantemente pelo centro de Santiago e das principais cidades do país, protestando contra a privatização e a mercantilização da educação no Chile. Em síntese, o estouro dos protestos, que acontecem desde maio de 2011, tem-se focado em torno da urgente necessidade de recuperar uma educação pública gratuita e de qualidade que gere as mesmas oportunidades para todos os cidadãos. A este respeito, um porta-voz da Confech assinalou que está em processo de construção um petitório único, que congregue os interesses do movimento estudantil em seu conjunto. Entre as principais demandas, além da exigência de uma educação pública gratuita e de qualidade, encontra-se o fim do lucro das entidades educacionais privadas, o término da educação municipalizada, melhorias na infraestrutura dos estabelecimentos públicos do ensino fundamental e superior, e que o passe escolar seja gratuito durante todo o ano.
Pinguins 2.0: a luta continua
Um importante aspecto a destacar destas mobilizações, é que elas são formadas, fundamentalmente, tanto nas bases quanto nas lideranças, por estudantes que durante o ano de 2006 participaram ativamente no movimento secundarista, conhecido como a “rebelião dos pinguins”. Assim, seus protestos, hoje como há cinco anos, desnudaram o esgotamento do sistema político e do modelo socioeconômico imperante no Chile desde a época do regime militar. Depois de praticamente quatro meses de repressão, os estudantes conseguiram uma audiência com o presidente Piñera para expor suas demandas. A principal delas – como já assinalamos – é a criação de um sistema educacional público com gratuidade para todos, fundado num marco democrático e pluralista, orientado à produção de conhecimento para um desenvolvimento integral e igualitário e para atender as necessidades do povo chileno, em toda sua diversidade e multiculturalidade.
Para financiar este sistema, os estudantes propõem algumas medidas que sempre aparecem no debate, mas que até agora nunca foram efetivadas, como por exemplo, a realização de uma reforma tributária de caráter progressivo, ou seja, que aumente proporcionalmente a tributação das grandes fortunas e das grandes empresas. Eles também sugerem a renacionalização de todas as minas de cobre, entregues ao capital privado imediatamente depois do Golpe de Estado de 1973. Para aplicar tais políticas, o regime político binominal tem representado um sério obstáculo, portanto, os estudantes finalmente sustentam a necessidade de mudar este sistema por um que seja uma expressão mais fidedigna das escolhas dos eleitores. O último plebiscito convocado pelos estudantes – junto a outras organizações gremiais, políticas e sociais – demonstrou a majoritária adesão da cidadania a propostas como uma educação pública gratuita (96%) ou o fim do lucro com fundos públicos em todos os níveis da educação (90%)(3).
Qual é o futuro destas mobilizações? Consideramos que, independente dos acordos concretos que o movimento estudantil possa alcançar em algum momento com os representantes do governo(4), o importante é que as demandas destes, e sua convergência numa crítica veemente do modelo econômico, social e ambiental imperante no Chile, conseguiram a adesão de vastos setores da cidadania e despertaram a consciência crítica da sociedade chilena, uma sociedade dividida e paralisada pelas feridas e traumas do passado.
Na tentativa de mudar o modelo educativo chileno, os estudantes estão indicando uma agenda de transformações relevantes para o país, a qual foi postergada pelos trabalhadores e os partidos políticos. Os estudantes representam hoje um ator sem medo, mobilizado nas ruas e articulado em todo o país, que utiliza formas democráticas de funcionamento, com amplo consenso social e que possui uma agenda de mudanças que vai muito além da simples indignação e da raiva contestatória.
Ainda que o destino e o sucesso das diversas estratégias sejam incertos, nos atrevemos a consignar que apesar da crescente ação repressiva contra eles(5), estes protestos e passeatas vão continuar por um longo período, num processo não linear de avanços e retrocessos, de negociação e de rupturas, de conquistas e derrotas, de cooptação e de resistência. O que está claro é que a sociedade chilena está retomando suas lutas históricas e, por sua vez, cimentando uma nova subjetividade no calor das manifestações. Com os conflitos emergindo permanentemente ao plano do “visível” e palpável, a democracia se faz mais saudável, rejuvenesce, se fortalece e aprofunda, já que indiscutivelmente sabemos que o excesso de consenso pode ocultar comumente o medo e a apatia, sentimentos tremendamente perniciosos quando pairam sobre uma comunidade ou país que aspira construir um futuro mais justo e fraterno.
Notas
(1) É preciso consignar que, ao começar seu mandato, Piñera nominou vários empresários para assumir importantes pastas dentro do governo (Relações Exteriores, Economia, Minas e Energia, Obras Públicas, Agricultura), situação que mudou no transcurso da sua administração, substituindo alguns deles por ministros que possuem um perfil mais “político”.
(2) Na última enquete realizada pelo Cerc (Centro de Estudos da Realidade Contemporânea) se constata que o nível de aprovação do governo alcançou somente 22%, e, pelo contrário, o índice de desaprovação elevou-se para 66%. Por sua vez, a falta de credibilidade no presidente Piñera chega a 83%, somados os que diretamente não acreditam (67%) e os que acreditam um pouco nele (16%).
(3) Plebiscito informal e não vinculante realizado durante os dias 7 e 8 de outubro a partir de uma convocatória da Mesa Social pela Educação que congrega diversas entidades como o Colégio de Professores do Chile, Confederação de Trabalhadores do Cobre, Patagônia sem Represas, Confech, Confederação de Estudantes Secundários (Cones), etc.
(4) Neste momento, o diálogo entre o governo e os estudantes se encontra congelado.
(5) Existem fortes indícios de que a repressão contra o movimento estudantil e outros setores mobilizados pode se aprofundar no que resta do governo Piñera, visto que o gasto em sistemas de inteligência, vigilância e segurança tem aumentado consideravelmente. Além disso, a campanha antidelinquência está sendo utilizada como pretexto para montar uma rede de controle, monitoramento e espionagem sobre a população em geral, no marco daquilo que se denomina como doutrina de segurança cidadã.
* Fernando de la Cuadra é doutor em Ciências Sociais, pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) e da Rede Universitária de Pesquisadores sobre a América Latina (Rupal).
** Publicado originalmente no site Adital.