“A política social brasileira é central para o bem-estar e distribuição de renda e é fundamental para o crescimento econômico”, constata o pesquisador do Ipea, Jorge Abrahão de Castro.
Na entrevista que concedeu por telefone para a IHU On-Line, o pesquisador do Ipea Jorge Abrahão de Castro considera que a política social brasileira “é um pilar de um paradigma de desenvolvimento econômico sustentável, baseado nos critérios de mais crescimento, melhor distribuição da renda e maior inovação e produtividade”.
Para ele, “o grande evento dessa década de avanços na área é a política de assistência social, que esteve marcada pelo atendimento via transferência de renda para deficientes físicos e aos idosos muito pobres, além da criação e desenvolvimento do Bolsa Família”. Portanto, continua, “os pilares da atual política social brasileira são a previdência, assistência, saúde e educação”.
Jorge Abrahão de Castro possui graduação em Estatística pela Universidade de Brasília e doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente, é pesquisador associado da Universidade de Brasília e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)..
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como as políticas sociais se colocam no cenário do desenvolvimento brasileiro?
Jorge Abrahão de Castro – A política social brasileira, por sua dimensão estratégica e abrangência na cobertura de riscos, contingências e necessidades da população, é central para o bem-estar social em dois sentidos. Primeiro, porque alavanca a promoção social via educação, permite oportunidades de geração de renda e trabalho, tanto no campo quanto na cidade, como também é um dos elementos centrais para a produção e acesso à cultura. Por outro lado, sustenta a proteção social, fortalecendo a seguridade por meio da saúde, previdência e assistência, compondo um todo muito importante para gerar, na população brasileira, uma sensação de solidariedade e bem-estar, além da possibilidade de, a partir disso, criar uma geração mais educada e aumentar a produtividade, a inovação e a distribuição da renda.
Pensando no futuro, a política social é central para aumentar a cidadania e a produtividade, além de ser, no presente, um elemento essencial da demanda e, por isso, ter a capacidade, em função do seu tamanho em termos de gastos públicos, de alavancar o crescimento econômico.
Neste sentido, penso que a política social brasileira tem dois vetores importantes: é central para o bem-estar e a distribuição de renda e, em segundo lugar, é fundamental para o crescimento econômico, também contribuindo para ampliar a autonomia da economia brasileira. É um pilar de um paradigma de desenvolvimento econômico sustentável, baseado nos critérios de mais crescimento, melhor distribuição da renda e maior inovação e produtividade.
IHU On-Line – Quais são as políticas sociais que mais impactam a realidade hoje?
Jorge Abrahão de Castro – Certamente a previdência social é uma das mais importantes, pois impacta fortemente a situação da população inativa brasileira. Hoje, grande parte dos idosos brasileiros tem cobertura proveniente da previdência social de nosso país. Por isso, ela é a maior área de gasto na política social que temos. A outra grande área é a saúde, porque atende o conjunto de toda a população brasileira, tendo no Sistema Único de Saúde (SUS) sua estratégia central e de sucesso, mesmo com os percalços existentes, que se devem, em grande parte, à sua dimensão e às heterogeneidades sociais do país. A educação pública é outra área importante na política social, abarcando toda população e estrutura em todo o território nacional.
No entanto, o grande evento dessa década de avanços na área é a política de assistência social, que esteve marcada pelo atendimento via transferência de renda para deficientes físicos e a idosos muito pobres, além da criação e desenvolvimento do Bolsa Família. Portanto, os pilares da atual política social brasileira são previdência, assistência, saúde e educação. Por outro lado, também há a política de salário mínimo, que assumiu uma função de grande importância para o conjunto da população que está no mercado de trabalho.
Essa política de regulação salarial serve como um balizador das remunerações. Por outro lado, é também o indexador dos principais benefícios sociais da previdência e assistência social e uma importante conquista estabelecida na Constituição Federal de 1988.
IHU On-Line – Quais as possibilidades de uma mudança mais radical na realidade a partir da nova proposta de combate à pobreza extrema pelo governo federal?
Jorge Abrahão de Castro – O radical, nesse sentido, seria erradicar a pobreza extrema. E isto não é nada trivial. Os pobres, que estão na “rabeira” da sociedade brasileira, encaixam-se de forma muito vulnerável dentro do padrão de consumo e do sistema de proteção e promoção social. Ao verificar que há um conjunto razoável de brasileiros nessa condição, e se você consegue melhorar suas vidas em termos de renda, acesso a serviços e possibilidades produtivas, está sendo feita uma mudança profunda na sociedade. É uma mudança histórica.
Na verdade, estamos fazendo história a duras penas desde a Constituição de 1988, montando o sistema de políticas sociais que, hoje, existe. Criar um SUS que abarca a todos é fazer história. Os mais pobres nunca tiveram esse tipo de benefício nos 500 anos de história brasileira.
Existe a oferta de educação básica pública para quase todos, ou seja, aquela coisa do passado de que as pessoas não tinham acesso a nada já não existe mais, mesmo questionando-se a qualidade dos serviços.
O desafio será conseguir transferir renda para aqueles que, neste momento, não têm condições objetivas de entrar no mercado de trabalho, e ao mesmo tempo estruturar a oferta de emprego e possibilidades de trabalho para o conjunto da população.
Para tanto, serão necessárias também a adesão e a estruturação de uma boa governança (o que vai ser complexo, porque é um conjunto muito grande de ações, entes federados, instituições públicas) e, ao fazer tudo isso funcionar a favor de uma determinada parte da sociedade para gestar maiores oportunidades e bem-estar, estaremos fazendo algo radical e vencendo uma etapa cruel na nossa história, que foi a que gerou essa quantidade de gente excluída.
IHU On-Line – Até o momento as políticas sociais brasileiras avançam naquilo que Amartya Sen chama de potencialização das capacidades humanas. Quais as possibilidades da outra dimensão que Sen também reconhece de que as capacidades humanas potencializem as políticas públicas?
Jorge Abrahão de Castro – Um dos vetores é aumentar as capacidades do indivíduo. Mas penso que é preciso ir mais além, buscando-se também fazer com que as capacidades geradas sejam de fato realizadas pelos indivíduos e grupos, com isso possibilitando a geração de trabalho e renda mediante a ação direta do Estado. É o que ocorre quando se organizam compras públicas e preços mínimos, por exemplo. Porque é um grande equívoco imaginar que, aumentando as capacidades, será já suficiente para que depois o mercado sancione e valide tal esforço. Nas atuais estruturas produtivas em que estão envolvidos os mais pobres, as desigualdades são muito grandes, sendo necessário ir para além da expectativa que o mercado possa ser o grande regulador do processo. Quando fazemos o Programa de Aquisição de Alimentos, estamos interferindo nas “livres forças do mercado”.
Pode-se imaginar que mesmo o pequeno agricultor vai produzir e vender no mercado, e isto é certo para uma parcela. Mas vai haver uma parte expressiva que não será comandada pelo mercado, e sim por essas políticas de Estado, ocorrendo a “desmercadorização” de uma parcela da produção, assegurando resultados a todos. Por outro lado, as políticas sociais hoje, quando geram capacidades e habilidades nos indivíduos, contribuem fortemente para ampliar operacionalidades de grupos e coletivos sociais, como, por exemplo, a maior participação nas organizações sociais e nos grandes eventos públicos, tais como as conferências nacionais, estaduais e municipais das diversas áreas e setores sociais. Esse processo tende a afetar e mudar a estrutura da democracia existente, no sentido de procurar garantir o exercício de direitos e interesses das diversas camadas sociais.
IHU On-Line – O senhor concorda que as políticas de distribuição de renda mínima não combatem a miséria, apenas amenizam a pobreza?
Jorge Abrahão de Castro – Eu não concordo com tal assertiva. Eu diria que em países com um mercado de trabalho com informalidade e precariedade tão imensas, conjugado com a enorme desigualdade social brasileira, a transferência de renda cumpre papel estratégico central. É um dos pilares da solidariedade social entre os brasileiros e geradora de segurança alimentar, nutricional e de ampliação de acesso a bens e serviços diretamente relacionados às necessidades fundamentais da vida dos indivíduos e de suas famílias. Lamento, isto sim, que o valor das transferências em alguns programas é ainda baixo para dar conta de retirar esse conjunto da população da situação de extrema pobreza, como é o caso de algumas famílias hoje incorporadas ao Bolsa Família. Ter essa compreensão não significa que não admitimos que a pobreza tenha também de ser combatida em todas as diversas manifestações e dimensões.
Portanto, a política social deve ser movida por alguns fatores: aqueles que estão em situação de necessidade de renda e não a conseguem diretamente, o Estado garante uma renda que lhes permite um determinado bem-estar. Ao mesmo tempo, oferece um conjunto de bens e serviços para pais e filhos terem todas as habilidades e capacidades para que, no futuro, não precisem ter esse tipo de benefício. Ninguém quer escravizar as pessoas mais pobres a uma estrutura de permanente subsídio do Estado. Não se trata disso.
IHU On-Line – Que política pública seria necessária para acabar com a miséria e a pobreza brasileiras?
Jorge Abrahão de Castro – No caso brasileiro, penso que seja fundamental fazer chegar aos indivíduos e suas famílias pobres os elementos de ampliação das habilidades e capacidades, além daqueles meios que permitam a plena realização desses atributos. No entanto, enquanto tudo isto não gera o efeito de prover a renda necessária ao padrão de bem-estar desejável, uma das políticas centrais deve continuar a ser a transferência de renda.
Há um conjunto da população pobre que tem educação formal muita baixa, ou nenhuma educação, entre outras carências, além de ter uma frágil ligação com o mercado de trabalho. Não adianta pensar que vai haver instantaneamente uma estrutura de geração de renda no mercado para essas pessoas, pois suas conexões com o mercado são muito ruins. É preciso, nestes casos, em primeiro lugar, dar-lhes condições mínimas de bem-estar, assim como à sua família. Ou seja, transferir renda monetária. Conjugado a isso, há as tarefas permanentes do Estado, ou pelo menos deveria ser, de produzir e prover bens e serviços sociais fundamentais às pessoas (educação, saúde, saneamento básico, serviços socioassistenciais, etc.) em quantidade e qualidade necessária.
Além disso, é tarefa fundamental da política pública estabelecer um conjunto de programas e ações geradoras de possibilidades para que os indivíduos possam exercer suas habilidades e capacidades, mediante maior ampliação de possibilidades geradoras de renda e trabalho. No limite, o Estado deve garantir o emprego e renda das pessoas naquilo que o mercado não dá conta, permitindo que as pessoas possam construir suas rendas e vidas por meio do trabalho e sendo remuneradas para tal.
IHU On-Line – Como avalia o plano recém-lançado pela presidenta Dilma de erradicar a miséria brasileira?
Jorge Abrahão de Castro – Primeiramente, penso que o governo da presidenta Dilma foi bastante corajoso, porque erradicar a pobreza extrema, considerando a linha de R$ 70 (é bastante próximo do critério estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) para as metas do milênio), é um grande desafio e de grande dificuldade. Considerando os países que assinaram as metas nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), seríamos o primeiro país a erradicar a pobreza extrema nesse curto período de tempo. Por outro lado, é uma ação complexa, porque os extremamente pobres, apesar de sua homogeneidade nas carências, estão heterogeneamente distribuídos nas localidades e nas regiões do país, o que vai exigir muita competência e governança. Não se trata, portanto, de uma operacionalização trivial. Não vai ser fácil levar o plano em todas as suas nuances adiante. Entretanto, isso vai significar uma ação muito importante para o Brasil e o mundo. Para o mundo pelo efeito de demonstração, de que é possível erradicar a miséria, desde que se tome isso como uma prioridade de governo.
Para o país, pelo efeito concreto da eliminação de uma situação inaceitável para uma nação que se pretende ser desenvolvida. Além disso, teria um efeito muito importante para a economia brasileira, porque esse conjunto da população entraria nas estruturas de consumo, tornando-se um importante vetor permanente de demanda de bens e serviços no mercado interno. Também será um elemento importante para incentivar a participação social, para ampliar a experiência do próprio governo em lidar com um conjunto da população que fica normalmente esquecido. Estas pessoas, às vezes, são lembradas nos livros, mas esquecidas na prática.
Por isso, penso que a iniciativa do governo Dilma é tão importante. A estratégia proposta de trabalhar com transferência, inclusão produtiva de bens e serviços é, no meu entender, correta. Penso que é algo fundamental iniciar esse tripé de forma objetiva, mediante a busca, identificação e institucionalização dos que estão fora do sistema. A ampliação para aqueles que estavam fora e a inclusão de um número maior de crianças é outra forma adequada. As crianças também serão, de início, beneficiadas. A inclusão produtiva voltada para o meio rural foi também lembrada.
A pobreza extrema brasileira está muito focada no meio rural, mas este, em termos de políticas públicas de ação produtiva, é mais homogêneo. Já de início, para as famílias rurais foi estruturado o acesso a determinados recursos a fundo perdido para incrementar sua estrutura produtiva. Por outro lado, há também uma preocupação ambiental com a oferta de uma espécie de bolsa ambiental para a população pobre cuidar do meio ambiente.
Ainda falta muita coisa a ser desenhada, como, por exemplo, a forma de fazer chegar saneamento a essa parte da população que não a possui, para que não tenhamos pessoas vivendo no meio do esgoto, em favelas precárias. É um exercício válido, importante, que vai exigir muito do governo e da sociedade, uma vez que o governo colocou isso como uma ação sua, mas a fiscalização será feita fundamentalmente pela sociedade, que vai contribuir nesse movimento.
IHU On-Line – Como o senhor avalia o financiamento público social? Que percentual do PIB é destinado à área social?
Jorge Abrahão de Castro – Calculamos que algo em torno de 23% é o que é abarcado pela política social. Ou seja, quase um quarto da economia brasileira gira em torno dessa estrutura. Metade disso vai para as estruturas de previdência social. Este é um vetor importante, principalmente o da previdência do sistema geral, que atinge a população brasileira. Já a previdência do setor público é um gasto que não é redistributivo, porque há maiores salários e garantia de previdências completas.
Outra parte importante do gasto social é a educação e a saúde. O gasto em educação gira atualmente em torno de 5% do PIB. Há uma discussão atual de ampliar esse valor um pouco mais, o que será importante para ampliar a oferta e melhorar a qualidade, e que pode ser fundamental para quebrar o ciclo da pobreza.
O investimento em saúde, por sua vez, atinge 3,5% do PIB.
A assistência social, que inclui o Bolsa Família, gasta cerca de 1% do PIB. A área de trabalho e renda também atinge cerca de 1% do PIB, e os gastos principais são com o seguro desemprego e abonos. Este é o núcleo duro do gasto com a política social.
No Brasil, o gasto com o social é um dos mais elevados da América do Sul, mas é bem mais baixo do que aqueles que são efetuados pelos países desenvolvidos. O lado ruim do atual sistema de financiamento social está na estrutura tributária, que é muito regressiva. Por exemplo, as pessoas que estão na extrema pobreza acabam pagando muito imposto de forma indireta.
IHU On-Line – Que investimentos em educação são mais urgentes?
Jorge Abrahão de Castro – Esta é uma discussão que está ocorrendo agora em torno do Plano Nacional de Educação (PNE). Temos necessidades de acesso e de qualidade. O acesso deve ser expandido consideravelmente para as crianças mais pobres como, por exemplo, a necessidade da oferta de mais creches. No ensino médio, há problema de frequência na escolarização. Mas ainda precisamos melhorar quantitativamente. A educação profissional é uma urgência. No ensino superior, o acesso é muito baixo em termos públicos, com preponderância do ensino privado. Olhando por esse lado, digo que temos um problema de acesso.
Lateralmente a isso, há a questão da qualidade. É preciso oferecer escolas de qualidade, nas quais a criança possa ter acesso desde a sua mais tenra idade. Isso vai fazer outro país. Tudo isto tem que ser permeado pela saúde e pela alimentação. Nossa escola pública precisa melhorar muito e, para tanto, vai precisar de mais recursos que os atualmente disponíveis.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.