A privatização do ensino superior

Apesar de todos os problemas que causa, a expansão das instituições privadas continua a todo vapor.

No início da década de 1960, 40% das matrículas no ensino superior estavam no setor privado; em 2009, essa porcentagem já era 75%, uma das duas ou três mais altas do mundo. E todos os governos do último meio século contribuíram para que isso ocorresse. Durante a ditadura, a taxa de privatização cresceu para 65%. Após um período de redução (da ordem de 5%) ao longo da década de 1980, voltou a crescer durante o período de implantação do neoliberalismo, atingindo cerca de 70% por volta do ano 2000. Finalmente, em 2009, atingiu 75%.

Hoje, os governos municipais e estaduais e a União oferecem inúmeros subsídios e facilidades ao ensino privado, na forma de bolsas e monitorias, isenções de impostos e financiamento estudantil, como o Fies, programas como o ProUni, etc. O Plano Nacional de Educação, proposto pelo executivo federal, amplia aquelas facilidades ao estender o Fies à pós-graduação. Muitas ações dos governos estaduais vão na mesma direção. O número de bolsistas do ProUni continua aumentando ano a ano. Projetos de reforma universitária ou a absurda proposta de não mais exigir pós-graduação para exercer o magistério superior, ora em tramitação no Senado, deterioram as condições de estudo e trabalho e facilitam a expansão das instituições privadas. Uma das justificativas frequentemente usadas para a privatização da educação superior é a limitação financeira do setor público. Se isso fosse verdade, esperar-se-ia que a oferta de vagas públicas fosse menor nos Estados mais pobres e maior nos mais ricos. Entretanto, o que se observa é exatamente o oposto: no Estado de São Paulo, há uma vaga pública para cerca de 700 habitantes, situação significativamente pior do que nos demais Estados, mais pobres, onde há uma vaga pública para pouco mais do que 400 habitantes (dados de 2009), o que demonstra a prioridade política dada à privatização.

A redução da privatização durante a década de 1980, fruto da crise econômica (a chamada década perdida), ao contrário de ter sido um bom sinal, ilustra um dos problemas da privatização: a crise atinge o sistema educacional quando este depende das possibilidades financeiras da população. Assim, a educação, necessária para o enfrentamento da crise e melhoria das condições para o futuro, contribui para o seu agravamento.

Outro problema é o critério usado para o oferecimento de cursos pelas instituições privadas: suas planilhas financeiras. Isso faz com que haja uma enorme quantidade de cursos de forte apelo mercantil oferecidos nas regiões mais ricas e que dão pouquíssimas contribuições para o desenvolvimento econômico, social e cultural do país, ao mesmo tempo em que as regiões e profissões que mais necessitam reforços são abandonadas. Essas mesmas questões financeiras atingem, também, a qualidade dos cursos oferecidos, restringindo as possibilidades profissionais de seus estudantes e a contribuição que poderiam dar para o desenvolvimento das diferentes áreas de conhecimento, comprometendo o futuro do país.

Há, ainda, outros muitos problemas. Os programas governamentais destinados aos estudantes com bom desempenho e dificuldades econômicas, como o ProUni, fazem exatamente aquilo que deveríamos evitar: colocar bons estudantes em maus cursos e em más instituições, onde o tratamento oferecido é muito precário. Na enorme maioria dessas instituições, praticamente inexistem bons laboratórios e boas bibliotecas, possibilidades de programas sérios de iniciação científica, perspectivas de pós-graduação, grupos de pesquisa motivadores e ampla possibilidade de acesso aos professores. Subsídios para alimentação, saúde e moradia, especialmente importantes para estudantes desfavorecidos economicamente, também não existem. Se esses mesmos estudantes estivessem em universidades públicas não só eles ganhariam: todos seríamos beneficiados.

A privatização do ensino superior segue o mesmo roteiro de todas as outras privatizações: o discurso ideológico e de impossibilidade do setor público, os subsídios, o abandono do setor a ser privatizado, a criação das bases legais, os programas governamentais e as transferências diretas de recursos. Somando-se os subsídios e isenções de toda ordem ao faturamento das instituições, talvez o país já esteja gastando cerca de R$ 40 bilhões com seu sistema privado de ensino superior neste ano de 2011. Apesar de todos os problemas que causa, a expansão das instituições privadas continua a todo vapor. Graças a um sistema político dominado pelos interesses do capital, inclusive por meio do controle do financiamento eleitoral, o setor privatista é majoritário no Congresso Nacional e não se envergonha de apresentar propostas que respondem apenas aos interesses mercantis das instituições.

Será que não temos muito a aprender com os estudantes e os docentes chilenos?

* Otaviano Helene é professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), ex-presidente da Associação de Docentes da USP e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. Mantém o blog http:blogolitica.blogspot.com/.

** Publicado originalmente no site Brasil de Fato.