A quem pertence o futuro da universidade?

Na Unifesp, os alunos entraram em greve em 22 de março por causa das condições precárias do campus. Foto: Olga Vlahou

O que a implantação dos cursos de Filosofia e de Ciências Humanas na periferia de Guarulhos pode nos ensinar levando-se em conta a singularidade de sua situação atual? Não me parece que tenham pertinência os modelos teóricos abstratos com que alguns professores tentam compreender as coisas (“novas centralidades”, “gentrificação”, “universidade como nova atividade motriz para promoção do desenvolvimento regional”), dada a complexidade e a originalidade dos acontecimentos vividos por todos os envolvidos desde 2007, mas agravados recentemente por episódios de violência ocorridos no campus.

Vale lembrar: alguns professores e técnicos se sentiram acuados por estudantes grevistas, a PM foi chamada e, com truculência, acabou com o protesto dos estudantes, resultando na prisão de estudantes e na depredação do campus. Faço esse resumo simplificado para não entrar na polêmica a respeito do que seriam fatos e do que seriam versões dos fatos. Antes disso, já houvera uma ocupação do campus por estudantes grevistas que impediram, por exemplo, que outros estudantes, técnicos e professores se utilizassem dos espaços da universidade para uma manifestação pacífica que visava à retomada das atividades no campus (antes da greve dos docentes). Esses seriam três casos exemplares da irrupção da violência no âmbito desta universidade.

Não consta que, diante desses fatos, tenha havido qualquer manifestação da comunidade de Guarulhos ou do Bairro dos Pimentas em defesa da EFLCH e do campus onde ela está instalada. Hoje, muita gente, com interesses difusos, alguns mais, outros menos difíceis de identificar, tem proposto moções, manifestos e atos pela permanência do campus no bairro e na cidade. Os estudantes grevistas reivindicaram uma Universidade Popular dos Pimentas. Houve inclusive manifestação de um professor numa reunião da Congregação da EFLCH em defesa de uma universidade “na periferia, pela periferia e para a periferia”, numa transparente defesa de um critério ideológico a respeito do papel da universidade, desqualificando os professores e os estudantes que não comunguem desse ideário. E muita gente acredita que a universidade está onde está porque é fruto de uma reivindicação histórica pela universidade pública na periferia e que deve, portanto, estar naturalmente a serviço exclusivo desses reivindicantes, já que historicamente as universidades serviram muito mais às elites que às populações pobres das periferias. Não se trata de nada disso, mas sim de entender que o futuro da universidade pertence aos seus estudantes e aos seus professores e pesquisadores e, portanto, a toda a sociedade, em negação a todos os particularismos, partidarismos e ortodoxias teóricas.

Sejam quais forem as forças que tentam se apoderar da universidade, ditando-lhe o seu papel e o seu rumo, um grande número de professores da EFLCH vem reagindo e assumindo parte do protagonismo, que lhe pertence de direito, e da responsabilidade em relação aos projetos políticos e pedagógicos que permeiam sua atuação como professor, pesquisador e orientador.

Imbuído desse espírito em defesa da universidade pública, tenho também tentado contribuir nesse debate. Voltemos ao início, o que a singularidade da experiência da EFLCH pode nos ensinar? Em primeiro lugar, que a universidade, lugar por excelência da liberdade de pensamento, das discordâncias respeitosas, da criação do novo e do acolhimento das diferenças não pode tolerar o recurso à violência, tampouco o patrulhamento ideológico. Em segundo lugar, que a crise e os tensionamentos existentes teriam sido, em grande parte, evitados se, simultaneamente à implantação do campus, tivesse sido criada a estrutura necessária para o seu funcionamento. É função da administração da EFLCH antecipar demandas, planejar a curto, médio e longo prazos, por exemplo, o número total de alunos e as suas proveniências, as demandas por salas de aula, auditórios e moradia estudantil, a necessidade de um transporte de massa, a questão do acesso viário, etc. Não vou me alongar nesse ponto, porque muitos colegas já têm proposto essa discussão e parece ser consensual que em grande medida a crise vivida é decorrência de problemas de infraestrutura.

Em terceiro lugar, que é problemático desvincular esse problema de dupla face (infraestrutura precária e inabilidade administrativa) da localização do campus. Porque se existe tamanha dificuldade de acesso físico ao campus, isso se deve ao fato de ele estar localizado numa região que não tem transporte de massa, nem projetos nesse sentido para as próximas décadas. A região também não possui prédios adequados para as atividades acadêmicas que pudessem ser alugados pela Unifesp durante a construção do seu prédio próprio, como ficou claro com a tentativa até agora frustrada de alugar o prédio da Stiefel. O dinheiro público a ser gasto na construção do prédio (cerca de R$ 50 milhões) e nos aluguéis propostos (R$ 130 mil mensais para um galpão que abrigará as atividades administrativas do campus e o prédio da Stiefel que sairia por quase R$ 2 milhões por ano) é suficiente para a compra e adaptação de imóveis prontos para uso educacional em locais próximos a estações de metrô. O antigo Seminário da Penha, por exemplo, que está sem uso, poderia ser declarado de utilidade pública e desapropriado em benefício da Unifesp, o que o salvaria inclusive das ambições dos especuladores que pretendem sua demolição para a construção de “torres” de apartamentos de classe média-alta.

Assim, quando diversos professores, como eu, defendem transferir a EFLCH para outro lugar com melhor acesso e onde existam prédios disponíveis, como é o caso do Centro de São Paulo, não se deve entender com isso que nós queremos abandonar a periferia e relegá-la à sua própria sorte. Estudantes de escolas públicas, com menor renda familiar, moradores dos diversos bairros periféricos da Grande São Paulo continuarão sendo o perfil predominante da EFLCH (por razões que podem ser explicitadas numa outra oportunidade). E isto é uma imensa alegria para todos os defensores, como eu, da democratização do acesso à universidade pública. São esses os estudantes que frequentarão os diversos cursos, habilitando-se para a apropriação intelectual da complexidade dos saberes das ciências humanas, da filosofia e da cultura em geral, e para a produção de novos saberes e novas interpretações, tomando como referência a localidade onde vivem e/ou onde vão exercer sua profissão.

Esta é uma proposta profundamente libertária, porque parte do princípio de que a universidade é cosmopolita, que ela dialoga com o mundo, com os saberes mais avançados que foram e que são produzidos nas melhores universidades, mas de modo a não perder a referência das condições concretas de existência dos professores e dos estudantes; estes devem estar habilitados a produzir novos sentidos para esses saberes, numa prática antropofágica que renuncia a toda política de compromisso com os valores vigentes, esses que resultam na imensa fabricação da miséria humana, material e espiritual.

No mais, esquece-se que, na Região Metropolitana de São Paulo, a periferia está por toda parte: há favelas incrustradas nos bairros onde moram os mais ricos proprietários, como é o caso de Paraisópolis em relação ao Morumbi, há moradias precárias, favelas e pessoas sem casas nas regiões centrais da capital, e assim por diante. E mesmo a presença de um campus completo da USP na região Oeste da capital não impediu que ao redor de seus muros crescessem diversas favelas e bairros pobres. Não se poderia ignorar a periferia, mesmo que se quisesse, bastando sair à rua para se vivenciar um mosaico de atores sociais, com todas as contradições inerentes à sociedade brasileira. Há quem acredite, contudo, que isolar a universidade em uma única região periférica, como é o caso do bairro onde a EFLCH está instalada, significa realizar a justiça social.

A mudança da EFLCH para o Centro de São Paulo poderia significar, para a grande maioria dos estudantes, maior tempo para o convívio na universidade, permitindo maior participação nos eventos e atividades extraclasses, a criação de novas formas de interação com o conhecimento, como grupos de estudo, cineclubes, oficinas literárias, entre outras, resultando num ambiente propício para a circulação de ideias e projetos, alargando os horizontes de interesses e de colaboração, inclusive com outras universidades, movimentos sociais, agentes culturais, etc. Atualmente, o tempo que se gasta nos deslocamentos e a energia gasta com o gerenciamento das crises dispersam as atenções que poderiam estar voltadas para a formação dos estudantes. Além disso, para os estudantes oriundos da periferia, deslocar-se para o Centro, não apenas para o trabalho, mas para a vivência universitária, pode significar também um deslocamento intelectual, já que se abre para sua vida uma experiência cosmopolita e cosmopolítica, tão enriquecedora para o pensamento, porque o Centro não é o “lugar das elites”, como alguns acreditam, mas o lugar onde ocorre uma miríade de encontros, onde se pode fazer a própria multiplicidade, rizoma a céu aberto.

Alguns colegas querem nos convencer que precisamos ter paciência, que daqui a alguns (?) anos a situação será outra, os problemas serão resolvidos pouco a pouco, começando pela conclusão das obras do prédio, que ainda não começaram. Minha opinião é que, com isso, disperdiçaremos praticamente uma geração de estudantes, aqueles que, mesmo trabalhando e se deslocando todos os dias para a periferia de Guarulhos, se formaram e vão se formar nesse ambiente precário, frequentando a universidade precariamente, sem poder viver a vida universitária, como a maioria de seus professores viveu. Com isso, também, corremos o risco de ver disperdiçadas inúmeras vocações para a pesquisa, porque pesará sobre seus projetos (individuais ou institucionais) a desconfiança a respeito da viabilidade de sua realização em condições tão inadequadas, como já tem ocorrido. Quantas dissertações, teses e livros poderão deixar de ser escritos porque seus autores serão desviados de suas pesquisas para ter de lidar com as crises que já se tornaram recorrentes?

No mais, a mudança da EFLCH não significa o fechamento do campus, já que inúmeras atividades poderão continuar ocorrendo, seja de pesquisa, de extensão, seja de estágio dos estudantes nas escolas do bairro, entre outras. Inúmeras outras atividades, compatíveis com a interação universidade-Bairro dos Pimentas poderão ainda ser criadas e é desejável que assim seja.

Era isso o que eu tinha a contribuir nesse debate: procurei tecer alguns argumentos, por um lado, em defesa do diálogo, do pluralismo e da liberdade de pensamento, por outro lado, em favor da cosmopolitização da EFLCH tomando como objeto de reflexão a singularidade da sua recente história tal como tem sido vivida por alunos, técnicos e professores, embora sendo eu apenas um professor.

* Sandro Kobol Fornazari é professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Unifesp.

** Publicado originalmente no site Carta Capital.