O governo Lula, durante os oito anos de mandato, instituiu um processo estatal de redistribuição de renda que foi fundamental para retirar da pobreza e da miséria uma parcela importante da população e, ao mesmo tempo, induzir o crescimento econômico.

É verdade que essa política foi implementada apesar, e contra, da política monetária de juros altos do Banco Central. E ela só foi possível porque, entre 2002 e 2008, o governo e a economia brasileira se viram diante de uma situação internacional muito favorável.

Especialmente em virtude da emergência da China e de sua entrada no mercado internacional, os preços dos produtos industrializados sofreram uma redução consistente e os preços das commodities agrícolas e minerais apresentaram ganhos substanciais, reduzindo a inflação mundial e produzindo importantes saldos comerciais para nosso país.

Por outro lado, a política de redistribuição da renda descolada de uma política industrial consistente tinha limites visíveis, mesmo que não ocorresse a crise de 2008. Em algum momento, a elevação do consumo das camadas beneficiadas pela redistribuição da renda tendia a se confrontar com uma oferta inferior de bens de consumo, causando pressões inflacionárias.

Essa situação contraditória era ainda mais evidente e perigosa se tivéssemos em conta, além do desenvolvimento lento do setor industrial de bens de capital e de bens consumo de massa, o avanço rápido do agronegócio, eminentemente exportador, sobre a produção de alimentos da agricultura familiar, reduzindo ainda mais a já pequena escala produtiva deste setor. Qualquer variação climática poderia diminuir drasticamente a oferta de alimentos, encarecendo preços e fazendo os índices inflacionários saltarem além do suportável.

Foi mais ou menos isso que ocorreu no final de 2010 e, em certa medida, continua ocorrendo em 2011. Por isso, se considerarmos os novos cenários internacionais de crise sistêmica, a tendência é que as pressões para frear os programas estatais de redistribuição de renda se tornem cada vez mais intensos, apesar de Dilma haver reiterado sua disposição de liquidar com a miséria no país.

Se olharmos bem, todos os movimentos políticos ocorridos desde a posse da presidenta têm, como fulcro, impedir a continuidade e expansão das políticas de redistribuição de renda e garantir que os capitais, em especial os financeiros, continuem expandindo seus lucros, apesar das crises. De qualquer modo, a nova situação internacional e seus reflexos na situação nacional colocam o governo Dilma diante de desafios novos, se quiser levar adiante a redistribuição de renda e a luta contra a miséria.

É bastante provável que o governo Dilma se veja obrigado a mudar a política de redistribuição estatal de renda do governo Lula, baseada fundamentalmente no fornecimento de fundos governamentais para a população de baixa ou nenhuma renda, numa política de redistribuição de renda que contemple fundamentalmente o assentamento maciço de lavradores sem-terra, para elevar a produção de alimentos e baratear seus preços, e o apoio à luta dos trabalhadores por salários mais justos, tendo em conta os altos lucros capitalistas.

Para enfrentar essa situação não basta anistiar as dívidas dos pequenos agricultores no Pronaf (Programa Nacional de Agricultura Familiar) e acelerar o assentamento de 80 mil famílias acampadas. É necessário executar uma plano acelerado de assentamento dos dois milhões a três milhões de lavradores sem-terra nos 90 milhões a cem milhões de hectares de terras improdutivas.

Isto pode ser realizado com mais agilidade se o governo aproveitar a experiência histórica de ocupação das fronteiras agrícolas por posseiros. O governo pode substituir o fornecimento indispensável para que os lavradores realizem o cultivo, os tratos culturais e a colheita, em geral realizado pelos comerciantes, com um alto custo, pelo fornecimento por meio da Conab. E pode também substituir a compra das safras pelos atravessadores pela compra das safras pela própria Conab.

Em ambos os casos, qualquer pessoa afeita ao comércio nessa área pode comprovar que os lavradores podem ter uma economia de 30% a 50% em seus custos, o que significará, em consequência, uma redução considerável nos custos dos alimentos. Portanto, por um lado poderemos ter um aumento do poder aquisitivo de mais dois milhões a três milhões de famílias. Por outro, teremos uma elevação da oferta, com preços rebaixados.

Se, além disso, o governo acelerar os atuais programas estruturantes de distribuição de renda e desenvolvimento no meio rural, garantindo a produção das economias agrícolas familiares, o país pode reduzir substancialmente as pressões inflacionárias e ter um ambiente mais favorável para modificar a política monetarista de altos juros do Banco Central.

O apoio à luta dos trabalhadores por salários mais justos, por seu turno, não pode significar ações diretas do governo nesse sentido. Afinal, isso não faz parte das atribuições governamentais. Mas tal apoio pode se dar, simbolicamente e em respeito à Constituição, pela manutenção e ampliação da política de impedir que as lutas e os movimentos dos trabalhadores sejam criminalizados, e de tratar com respeito e com diálogo as lutas dos trabalhadores dos serviços públicos.

É evidente que essas mudanças não implicam liquidar com os programas estatais de redistribuição de renda já em curso. Implicam, tão somente, dar-lhes uma base econômica e social mais consistente, garantindo que o aumento da demanda, principalmente de alimentos, seja fortemente apoiado pelo aumento da oferta. Isso tudo, é lógico, sem descurar dos investimentos necessários para o desenvolvimento industrial e para a reestruturação da educação e da saúde como áreas estratégicas para o desenvolvimento.

Para ter consistência e continuidade, a redistribuição de renda e, portanto, o aumento do poder aquisitivo dos mais pobres, não pode ser atropelada por uma oferta insuficiente.

* Wladimir Pomar é escritor e analista político.

** Publicado originalmente no site Correio da Cidadania.