A roda de chimarrão e as rodas de conversa

Lá em casa de papai e mamãe, Santa Emília, Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do Sul, a roda de chimarrão é sagrada desde sempre. Ou desde que me conheço por gente. De manhã bem cedo, entre seis e sete horas, tirado o leite das vacas, todos se reuniam ao redor do fogão a lenha, enquanto nos preparávamos para ir à escola. Hora de organizar o dia: quais as tarefas prioritárias; qual parte da roça capinar; que trecho de milho colher; se é preciso levar esterco antes de lavrar o pedaço onde vai ser plantado o feijão nosso de cada dia; saber se a redação foi feita; decidir se está na hora ou não de colher o fumo ou, no veranico de maio, a soja; vai chover ou não vai chover?

Antes do meio dia, a segunda roda de chimarrão: conversar sobre os problemas da manhã; a junta de bois que resolveu andar de lado; comentar sobre os vizinhos e suas lidas, acompanhadas do outro lado da cerca; preparar os trabalhos da tarde. (Naqueles tempos, ainda havia outra roda de chimarrão no início da tarde, hoje abolida).

Início da noite, vacas e bois na estrebaria, leite tirado, porcos alimentados, ovos recolhidos, tudo quieto, só o silêncio da noite sem luz elétrica (fui conhecer e admirar os interruptores de acender a luz pelos oito, nove anos), hora de passar o dia a limpo: os pendões de milho que estão aparecendo; a chuva que está faltando ou não; as formigas que estão comendo as plantas pequenas; as goiabas apanhadas no pé à beira da estrada; as bergamotas e seus gomos cheios de doçura. Na roda de chimarrão à beira do fogão a lenha, a família unida se encontra feliz e recompensada, conversando sobre a vida, a escola bancada pela comunidade, a união pelo bem comum de todas as famílias e agricultores familiares daquela pequena comunidade, que só em 2012 recebeu o primeiro pedaço de asfalto no centro, em torno da igreja.

As rodas de chimarrão continuam animando a vida das pessoas, enquanto começa e acontece por estes dias, em Venâncio Aires, autoproclamada a Capital Nacional do Chimarrão, de 3 a 13 de maio, a 11ª Fenachim – Festa Nacional do Chimarrão.

As Rodas de Conversa da educação popular são como uma Roda de Chimarrão. O que são Rodas de Conversa? São atividades desenvolvidas com o objetivo de criar espaços de estudo, de debates, de articulação e construção conjunta com diversos movimentos e organizações sobre diferentes temas de interesse e sistematização das experiências de educação popular. As Rodas de Conversa possuem como fundamento a concepção de Círculo de Cultura na perspectiva freireana (de Paulo Freire). São um espaço de ação educativa em que os participantes estão envolvidos em um processo comum de ensino e aprendizagem, com liberdade de fazer uso da palavra, expressar-se, intervir, estabelecer relações horizontais, vivenciar ações coletivas, ressignificar suas práticas e concepções, assim como reler o mundo em que estão inseridos, mediados pelo diálogo, num processo reflexivo.

Nesse sentido, as Rodas de Conversa não podem se limitar a um espaço de interação por meio do qual as pessoas apenas se informam ou apresentam seus pontos de vista. No âmbito da educação popular, as Rodas de Conversa, fundamentadas na concepção do Círculo de Cultura, devem contribuir para o amadurecimento político dos grupos populares (Plano Pedagógico e Organizativo para o Triênio 2012-2014 – Da nossa Diversidade, a Força e Unidade para Construir um Projeto Popular – Rede de Educação Cidadã – Recid).

Mais: “Vejamos uma mostra dos espaços onde os educadores e educadoras da Rede realizam suas oficinas, nas casas residenciais, prédios de alvenaria, galpões, barracos de barro com palha, beiras de praia, praças, parques, quadras esportivas, barracos de lona, salas de escritórios, salões paroquiais, salas de aula, hotéis, sítios, entre outros. Esses lugares são escolhidos por diferentes razões, mas, na maioria das vezes, são espaços populares por definição, ou seja, já abrigam de alguma maneira pessoas ou coletivos que se comprometem, em alguma medida, com a causa popular”. (Sem Cercas e Muros: a Educação Popular no Meio do Povo – Análise do Processo Pedagógico das Oficinas da Rede de Educação Cidadã – Equipe Pedagógica da Recid e Centro de Assessoria Multiprofissional – Camp, 2012).

Não parece, a Roda de Conversa, com a Roda de Chimarrão? “É assim que os ambientes e espaços de educação popular de verdade se conectam com a vida. A escuta e a sensibilidade, quando exercitadas, dão conta de escolher o melhor tema, a melhor metodologia, e igualmente, o melhor local. Seja este debaixo de uma árvore, porque faz sombra, no barracão da comida, porque há mulheres na casa da Dona Maria, porque ela é referência da comunidade”. (Idem).

Eu, que sou tomador diário de chimarrão e mantenho o hábito em Brasília, e participo de muitas Rodas de Conversa por este imenso país, posso dizer: a melhor Roda de Chimarrão é aquela ao redor do fogão a lenha na cozinha, família, vizinhos e parentes em volta. A melhor Roda de Conversa é a que reúne companheiras e companheiros em torno de um ideal, de um sonho, de transformar o Brasil num país e Nação de justiça, igualdade, democracia e liberdade.

E quem puder, ainda dá tempo de chegar na Festa Nacional do Chimarrão de Venâncio Aires. Se não conhece o chimarrão, é entrar na roda ou aprender a fazê-lo na Escola do Chimarrão. É o melhor chimarrão do mundo, porque cheio da hospitalidade gaúcha, de alegria e fraternidade.

Em quatro de maio de dois mil e doze.

* Selvino Heck é assessor especial da Secretaria-Geral da Presidência da República.

** Publicado originalmente no site Adital.