Trípoli, Líbia, 17/11/2011 – A anunciada introdução da lei islâmica na Líbia pós-Muammar Gadafi cria todo tipo de dúvida na população. As mulheres, os ateus e a comunidade amazig (bereber) lideram as críticas. “A shariá (lei islâmica) implica vivermos o dia a dia de acordo com a lei de Deus, e isso é o mais natural para um muçulmano”, explicou Ibrahim Mashdoub, imã da mesquita de al Garamaldi, em pleno centro antigo de Trípoli.
Apesar de tão categórica afirmação, este líder religioso vacilou quando as perguntas da IPS se tornaram mais específicas. As mulheres deverão cobrir a cabeça? Elas poderão dirigir veículos? As mãos de quem rouba serão cortadas? “Este é um dos problemas com a shariá: todos falam dela, mas ninguém sabe em que consiste realmente”, queixou-se Wail Mohammad, um jovem morador de Trípoli, em um café da moda a poucos 50 metros da mesquita. Muitos jovens como ele dificilmente podem esconder seu desgosto diante do relevante papel que teria a religião na Líbia no curto prazo.
O Conselho Nacional de Transição (CNT), que desde fevereiro lutou contra o regime de Gadafi (1969-2011), assassinado em 20 de outubro, anunciou três dias depois que o país seria regido no futuro pela shariá. “Qual shariá vamos escolher? A do Paquistão? A da Indonésia? Talvez, a do Irã?”, perguntou Mohammad, tradutor de inglês, hoje sem trabalho.
É o caso do xeque Omar Mujtar, máxima autoridade militar no antigo reduto de Gadafi de Bani Walid, 150 quilômetros a sudeste da capital. “Todos os líbios querem uma shariá como no Catar ou nos Emirados Árabes Unidos. Isso nos dará a coesão de que o país precisa”, disse à IPS este chefe militar e tribal, quase parafraseando o que disseram os líderes do CNT nas últimas semanas. Seja como for, a shariá do Catar (onde as mulheres podem dirigir veículos e o consumo de álcool tem alguma tolerância) parece ter certa aceitação.
Entretanto, são muitas as vozes contrárias a que a futura Constituição tenha raízes no Alcorão. “O próprio CNT se empenha em criminalizar os que não são religiosos”, destacou Abdulah Zlitani, conhecido advogado de Trípoli. “Está sendo lançada uma mensagem que tenta convencer as pessoas de que uma Constituição que não seja islâmica abolirá por lei o culto religioso e promoverá a prostituição. É uma loucura”, afirmou Zlitani em seu escritório no bairro de Gargaresh, sudoeste de Trípoli.
E não são os ateus ou os agnósticos como Zlitani os únicos a defender uma separação entre Estado e religião. Fathi Buzajar é muçulmano e preside o Congresso Amazig da Líbia, entidade que luta pelos direitos da principal minoria da Líbia, que constitui cerca de 10% da população. “Separar política e religião é fundamental para se construir um Estado democrático, mas o novo governo líbio parecer já ter descartado completamente esta via”, disse Buzajar à IPS.
O líder amazig denunciou também que o último rascunho do texto constitucional não reconhece o povo nem sua língua, algo que ele não esperava depois da brutal assimilação que Gadafi exerceu sobre os bereberes. “Não só somos árabes como também professamos uma corrente muito moderada do Islã, a ibadi, cujos imãs foram quase todos executados por Gadafi, pelo fato de nosso culto constituir outro símbolo de identidade”, disse Buzajar. Este intelectual amazig considera que a “ideologia árabe-islâmica importada do Golfo é uma das causas históricas da infelicidade”.
Provavelmente, sejam as mulheres as que mais razões tenham para temer a ainda não definida, mas quase inevitável, shariá. Muitas começam a se perguntar inclusive se terão que “compartilhar” seus maridos, após as polêmicas declarações do presidente do CNT, Mustafá Abdul Khalil, sobre a legalização da poligamia.
“Khalil não para de repetir que a Líbia adotará a shariá”, queixou-se a jovem Asma Hassan, ativa defensora dos direitos civis em Trípoli. A última vez que o presidente do CNT o fez foi no dia 12, perante a alta representante da União Europeia para Assuntos Exteriores e Política de Segurança, Catherine Ashton. “O certo é que esta é uma decisão que deve ser tomada pelo povo líbio, de forma consensual e democrática”, disse Hassan.
Existirem tantas verões da shariá se deve às múltiplas interpretações de textos e tradições, segundo Hassan. Ela deu um exemplo. “O que diz literalmente o Alcorão é que você pode casar com dois, três e até quatro mulheres, mas em seguida afirma que não seria bom. Parece que a maioria aqui decidiu ignorar o segundo parágrafo’, protestou Hassan, que usa o véu “mais por discrição do que por convicção”.
Também se materializam outras preocupações sobre quanto do passado gadafista continuará vivo no futuro do país. Ao grande número de membros do regime de Gadafi na atual administração se soma o papel que o Islã teria na “nova” Líbia. Não por acaso, “Deus, Muammar e Líbia” era um dos lemas mais falados nas quatro décadas de poder do coronel. Aquela Líbia já era um Estado islâmico no qual se praticava o Islã de forma rigorosa. Não foi por acaso também que Gadafi deu o nome de Livro Verde (a cor do Islã) ao volume de leitura obrigatória que continha sua ideologia.
As eleições constituintes de 23 de outubro na vizinha Tunísia (primeiro país a abrir a caixa de Pandora das revoluções no norte da África) podem ser um termômetro e um catalisador do que ocorre na Líbia. Com 40% dos votos, a coalizão islâmica moderada Ennahad venceu as primeiras eleições realizadas após a revolta. “Provavelmente, o Islã moderado seja a única possibilidade de civilização que há para a Líbia frente ao caos”, disse à IPS o escritor e analista político Santiago Alba Rico, intelectual espanhol radicado há 12 anos na Tunísia.
“Uma democracia islâmica na Líbia seria um avanço muito mais progressista do que a ditadura de Gadafi. E a saída mais realista para a possibilidade de um enfrentamento entre milícias”, opinou Rico, referindo-se à desordem que hoje reina em um país onde essas facções armadas impõem sua lei. “Adote-se, ou não a shariá, o mais desejável é que isso seja decidido pelo povo líbio nas urnas”, acrescentou. Envolverde/IPS