Miriam, da Escola Municipal Paraguai, em Marechal Hermes, me fez a pergunta definitiva em um debate sobre cidades sustentáveis no Rio de Janeiro. É sustentável uma cidade que não tem saneamento básico para todos, ambientes decentes de moradia e estudo, serviços de saúde de qualidade para todos?
A resposta é um não firme e definitivo. Há, na pergunta da menina, a perspicaz compreensão de que não faz sentido uma visão de sustentabilidade que não tenha como centro o ser humano, a espécie humana.
Ela vê com mais agudez as muitas insuficiências das abordagens da questão da sustentabilidade, em particular das políticas de sustentabilidade públicas e privadas, que a maioria dos adultos com responsabilidade sobre o tema. O princípio da defesa da bioesfera não é a proteção do planeta em si mesmo, mas das condições de sustentação da vida humana nele. E não de vida humana em qualquer condição. Vida humana com bem-estar e segurança – alimentar, climática, social – para todos. A visão puramente naturalista da sustentabilidade, no sentido de voltada exclusivamente para a proteção da natureza, é tão equivocada quanto a visão economicista que se quis dar à sustentabilidade na Rio+20, em que a primazia é da economia.
Quando apontei, em comentário recente na CBN, que o compromisso da C40, uma coalizão de cidades da qual fazem parte Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo, era dos resultados mais concretos da Rio+20, não o fiz para dizer que era suficiente para termos cidades sustentáveis. Em comentários e posts mais antigos, eu havia falado sobre “cidades amigáveis” e sobre como a urbanização vai requerer cidades sustentáveis voltadas para o bem-estar. “Amigável” só pode se referir à pessoa humana. O valor central de todo esforço de sustentabilidade é humano.
A visão fundamental de uma nova sociedade sustentável, em convivência equilibrada com a natureza, só faz sentido se for ancorada em novo humanismo, que entenda a valorização do ser humano, sua proteção e segurança como partes indissociáveis da proteção e valorização dos recursos naturais e da biodiversidade que asseguram as condições para a vida e o bem-estar. Não é só o ambiente natural que se encontra degradado. O ambiente social também, não só por suas insuficiências físicas – de infraestrutura, serviços básicos, mobilidade – mas por suas insuficiências humanas – desigualdades construídas, desrespeito pelo outro, violência, guerras, exploração sexual, trabalho degradante. Quem tolera e permite um ambiente social degradado, jamais promoverá a sustentabilidade do ambiente natural.
O ecossistema humano, ou social, é parte integrante e central do ecossistema planetário. Uma visão de proteção do ecossistema natural só faz sentido para garantir o pleno desenvolvimento do ecossistema social. Isto implica qualidade de vida e igualdade de oportunidades para todos não apenas terem acesso ao básico, mas aos meios necessários à realização pessoal e à felicidade.
Uma cidade que reduz emissões, eletrifica com energia solar seus estádios, mas deixa comunidades sem saneamento básico, sem assistência médica e sem escola de qualidade, nunca será sustentável. A mudança do regime de chuvas, que já ocorre por causa da mudança climática, faz com que inundações em áreas sem saneamento, com esgoto a céu aberto, lixões, propaguem doenças, que o sistema de saúde não cuidará apropriadamente. Precariedade nunca é seletiva: áreas sem saneamento dificilmente terão educação e saúde de qualidade, ou qualquer outro serviço eficiente e eficaz de proteção social.
Uma cidade onde há escolas sem ventilação adequada, quentes demais no verão tropical, frias demais no inverno, que não oferecem condições de aproveitamento das crianças e jovens no limite máximo de seu potencial, nem educação de qualidade, não é sustentável.
Quando falamos da necessidade de proteger a biodiversidade e de evitar o empobrecimento da fauna e da flora, precisamos lembrar que estamos também, e principalmente, perdendo diversidade humana e empobrecendo a espécie humana. No Brasil, perdemos exemplares valiosos da espécie humana, da infância à flor da juventude e na maturidade. São perdas causadas pela violência urbana, que está associada à discriminação: as principais vítimas são os jovens negros. Perdas por causa de mau atendimento de saúde. Perdas de jovens mulheres, na maioria negras, por causa de abortos induzidos em casa e sem condições médicas e sanitárias. Perdas de exemplares preciosos da espécie humana em quantidade absurda de acidentes de trânsito, grande parte decorrente de transportes públicos precários e infraestrutura degradada.
Quando falamos no empobrecimento das florestas por causa do corte seletivo, do desmatamento disfarçado, ou em decorrência da mudança climática, precisamos refletir sobre o empobrecimento da espécie humana, da sociedade humana. Esse empobrecimento humano ocorre quando a maioria não tem acesso a educação de qualidade, a assistência médica de qualidade, nutrição adequada, ambientes nos quais possam realizar seus diferentes potenciais na plenitude.
Quando a elite é bem educada, tem seguro de saúde que lhe permite atendimento de primeira, tem todas as oportunidade de desenvolvimento pessoal e a maioria recebe educação de péssima qualidade, não tem atendimento médico adequado, nem acesso às condições de desenvolvimento pleno de seus talentos, estamos empobrecendo a maioria da nossa sociedade humana.
Há um erro fundamental de concepção das políticas para os mais “carentes”: dar-lhes o mínimo e condições para que continuem como estão, em situação “melhorada”. Mas essa condição “melhorada” não lhes abre a porta para realizarem seus anseios, para serem “outra coisa”, perseguirem outras profissões às quais só a elite tem acesso. Essas políticas “qualificam” as pessoas para exercerem profissões “práticas”, para saírem do básico para o intermediário, quase como a lhes dizer que o cume não lhes é possível. O que dizer do “luxo” de buscarem profissões intelectuais, artísticas, científicas. E se a garota não quiser ser doceira, nem costureira, quiser ser filósofa, ou escritora, ou física de altas energias? E se o filho do seringueiro, não quiser ser seringueiro ou artesão da borracha, mas climatologista, ou astrônomo?
Recentemente uma menina muito pobre, que estuda na PUC-Rio porque tem bolsa integral, escreveu para me contar que havia conseguido um notebook com a doação do pagamento por algumas aulas que eu havia dado ao programa de bolsas da PUC. O notebook lhe permitiria estudar mais ciência da computação em casa, para se preparar para uma profissão da qual gosta, mas que escolheu exercer remotamente. Teria dificuldade de ser empregada para trabalhar no ambiente de uma empresa por causa do preconceito de que é vítima. Nem pensa em tentar, porque, provavelmente, não se sente segura, nem disposta a enfrentar as dores da discriminação diária, dos olhares de esguelha, da evidente distância que os outros procuram manter.
Essa sociedade que força uma menina a trabalhar remotamente para não ser vista, não é humana, nem sustentável. O trabalho remoto pode ser um ganho e parte importante da sustentabilidade, mas tem que ser por livre escolha, nunca como fuga da discriminação, uma espécie de degredo, autocondenação à solidão e ao isolamento por falta de acesso à convivência social. Acho que histórias como esta e perguntas como a de Miriam definem com clareza o que é desenvolvimento humano e como ele é condição indispensável à noção de sustentabilidade em um mundo melhor.
* Publicado originalmente no site Ecopolítica.