Arquivo

"A Terra cansa". Entrevista com Ailton Krenak

“A terra cansa. É burrice suicida pensar o desenvolvimento sem integrar os direitos da terra”.

É burrice suicida pensar o desenvolvimento sem integrar os direitos da terra, aponta o pensador indígena. O Brasil não pode se condenar a ser a imitação miserável de países ricos. “A terra cansa”, diz ele, “uma hora ela não responderá mais”.

A entrevista com Ailton Krenak é de Tainá Aragão, do Instituto Socioambiental (ISA), para o livro Povos Indígenas no Brasil 2017-2022, publicada por Instituto Socioambiental – ISA, 16-05-2023.

Eis a entrevista.

Nos últimos cinco anos, os crimes socioambientais ganharam as principais manchetes dos jornais brasileiros, como nunca antes. O que mais te chamou atenção nesse período?

É uma experiência radical. Em cinco anos, a gente viu essa pobreza se expandir e deixar cerca de 32 milhões de brasileiros nessa condição de passar fome. Só em São Paulo já foram registrados mais de 6,2 milhões de pessoas que correm risco de ficar sem comer amanhã. Até em São Paulo, onde as pessoas geralmente não se alimentam do rio ou da terra, mas consomem produtos processados do mercado, as pessoas estão ficando sem comida. Nós estamos em meio a um desastre social amplo, onde a questão ambiental entra só como motor.

O desastre socioeconômico acontece quando milhões de famílias perdem o contato com as fontes de produção de alimento e passam a depender de cesta básica, passam a esmolar. É uma tragédia. A gente piorou de uma maneira inimaginável nesses cinco anos, em especial com a perda desses recursos que estavam disponíveis para milhares de pessoas, principalmente para aqueles que vivem na floresta, para aqueles que vivem na Mata Atlântica ou no Cerrado e que tinham sua economia baseada no acesso à terra.

A gente diminuiu muito o atendimento à demanda de terra de assentamento. A gente não tem mais assentamentos, a gente tem assentamentos estragados e uma política deliberada de produção de pobreza. A questão ambiental aparece de maneira mais gritante, porque, talvez, ela consiga articular o campo e a cidade. As pessoas que vivem na cidade já estão sentindo a perda ambiental como uma coisa que atinge diretamente seu cotidiano. A fumaça que vem das queimadas na Amazônia e paira sobre São Paulo aproxima as realidades de pessoas que vivem no ambiente urbano e de pessoas que vivem na floresta, algo que nenhum de nós imaginava, é como se fosse uma ficção.

Pela primeira vez na história do país, a Constituição de 1988 possibilitou que indígenas e outros povos tradicionais tivessem seu direito desenhado. Mas, nesses últimos anos, esses direitos retrocederam. Como você percebe esses retrocessos?

Eu olho essa linha do tempo e percebo que a ideia de tomar uma Constituição como guia geral para a vida política de um país, elencando questões sociais e ambientais – que foi o que a gente fez na Constituinte de 1988 –, pode também criar uma espécie de barreira. Algumas cláusulas podem ficar, como dizem os juristas, pétreas, mas muitas comunidades podem perder direitos em vez de acessá-los. A Constituição dizia que o Estado brasileiro deveria, em cinco anos, concluir o reconhecimento de todas as Terras Indígenas e, nesse ínterim, fizeram manipulações jurídicas e políticas para cravar o marco temporal no meio do caminho – temos 15 anos de marco temporal. Esse jogo de empurra-empurra serve para a gente despertar um pouco nossa percepção de que uma constituição não é um livro sagrado, não é uma bíblia. Alguns constitucionalistas querem dar esse peso à Constituição, de que ela é esse documento fundador, mas isso contraria a própria dinâmica das sociedades modernas, as quais estamos integrando, querendo ou não.

O evento da globalização alterou tanto essas ideias do século XX, que a gente deveria considerar uma negociação objetiva em torno da realidade política que estamos vivendo no país e os compromissos que são possíveis extrair dessa negociação. Não seria fora do tempo. Uma constituição é um compromisso, é um contrato social e, como contrato social, deve refletir as mudanças que a sociedade experimenta, mesmo que involuntariamente.

Nós estamos passando por uma situação em que a questão da terra se agravou de uma maneira semelhante a um genocídio. Então, nós precisamos ter sabedoria, discernimento. A questão ambiental não vai mudar porque alguns princípios fundamentais estão escritos na Constituição; ela vai mudar se a gente mudar nossa maneira de ser sociedade. Enquanto formos uma sociedade racista, que reproduz o colonialismo dentro de casa, sem dúvida, estaremos incentivando diretamente o tipo de progresso e desenvolvimento posta em curso no governo federal por essa legenda [bolsonarista].

Antes de projetar desenvolvimento, seria necessário pensar em envolvimento. Envolvimento maior com a questão ambiental, com a questão territorial, a gestão do território amplo do país, a questão das bacias hidrográficas que estão sendo privatizadas, destruídasdepredadas. Enfim, aquilo que os conservadores chamam de “patrimônio comum”.

Parece que eles não sabem conjugar meio ambiente e sociedade. Eles continuam achando que são coisas separadas, como sempre acharam: cultura versus natureza, essas ideias. Tomara que a gente consiga sair desse momento péssimo da vida política brasileira, e vamos ter que fazer isso com a Constituição que nós já temos. Mas não custaria nada, depois disso, botar em questão o molde do Estado colonial.

É preciso perguntar se queremos reproduzir o Estado colonial infinitamente, eternamente. Será que esse é o único jeito de se organizar em sociedade? Eu já disse que esse Estado colonial que temos aqui foi deixado aqui por Dom Pedro: um príncipe português deu no pé e largou a carcaça do Estado português em cima das nossas vidas. A maior parte da burocracia estatal transferiu-se direto de Lisboa para cá, veio junto com a família real, e deveria ter ido embora com eles.