José Carlos Bom Meihy, pioneiro da técnica, diz que o Brasil desempenha papel de destaque nesta linha de estudos. Foto: Yuri Bittar/Unifesp

“A história oral conquistou definitivamente seu espaço”, acredita José Carlos Bom Meihy, um dos pioneiros no uso da técnica para reconstruir o passado. Professor titular aposentado do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Núcleo de Estudos em História Oral, da mesma universidade, Meihy acredita que ela tenha se tornado um elo entre a academia e a vida fora dos muros escolares. Segundo o pesquisador, o Brasil assumiu mundialmente “um papel de destaque” neste tipo de estudo. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida à CartaCapital.

CartaCapital: Qual a situação da história oral no Brasil?

José Carlos Sebe Bom Meihy: Não seria errado dizer que assumimos mundo afora papel de destaque tanto em termos numéricos quanto na discussão teórica e produção de resultados publicados. Autores como o italiano Alessandro Portelli e o norte-americano Ronald Grele costumam repetir que o Brasil é uma caixa de ressonância dos avanços de estudos feitos sobre história oral no mundo. Aqui se reverberam tendências amplas. A ABHO, fundada em 1994, é um laboratório aglutinador de investidas que revelam a popularidade da prática que, aliás, extrapola o âmbito das universidades.

CC: Pode-se falar da existência de uma história oral brasileira?

JCSBM: A história oral floresce apenas em espaços democráticos. Durante a ditadura, entrevistas livres padeciam de limites, pois eram aproximadas dos “depoimentos”, com implicações severas. Foi apenas a partir dos anos 1980 que pesquisadores de países da América Latina ampliaram seu trabalho com entrevistas. Uma das linhas inaugurais da nossa história oral foi justamente com tipos sociais enjeitados pelo regime anterior. Assim, os primeiros trabalhos sobre história oral entre nós nasceram fora do país, versando sobre a “memória dos exilados”. A busca de compensação do “tempo perdido” sugeriu uma série de traduções que serviram para fomentar diálogos. Estudos sobre mestiçagem, presença indígena, a problemática específica da mulher brasileira e, principalmente, o resultado de processos migratórios em nossa cultura obrigaram a uma relativização dos padrões externos, ainda que muitos insistam em arremedos criticáveis. Não há como negar uma história oral feita no Brasil, mas ela tem mais a ver com a configuração de matrizes latino-americanas do que norte-americana ou europeia. Procedeu-se a uma descolonização dos modelos externos.

CC: Como definir história oral e qual sua relação com a escrita?

JCSBM: A história oral realiza-se num ciclo que parte da existência de um projeto, passa pela definição do grupo a ser entrevistado e depois de efetuada a gravação tem de ser vertida para o código escrito. É fundamental assumir a existência de dois códigos diferentes: a fala e a escrita. Mesmo projetos que se esgotam na recolha de gravações orais para se constituírem em “bancos de histórias” devem ter correspondentes escritos. O trabalho de transcrição leva em conta que entrevista é mais do que diálogo. Todo o gestual, lágrimas e silêncios fazem parte da performance.

CC: O autor da história oral é o entrevistado ou quem publica?

JCSBM: É um trabalho feito em colaboração. Duas partes se completam na produção de resultados que geram um documento. O trabalho começa com o narrador estimulado a contar. O ouvinte, além de animar a conversa, deve ser o “tradutor” da fala. Por sua vez, o texto só tem sentido se for autorizado para publicação e uso. Há, portanto, fases de controle: quem fala, quem transcreve, a autorização, que pode ser total ou parcial, mas é sempre negociada, e a publicação. Juridicamente, o responsável pelo projeto é o autor, pois se responsabiliza e se beneficia com o produto final.

CC: O que diferencia a entrevista na história oral daquelas praticadas por jornalistas, antropólogos e sociólogos?

JCSBM: Não é válido supor que gravações de entrevistas sejam invenção nova, mas os modos de produção e o destinatário divergem. Deve-se levar em conta que a entrevista jornalística tem como objetivo o esclarecimento público de algum evento. O que se busca é a combinação do caráter informativo com o testemunho. A história oral difere por se preocupar com a narrativa em seus aspectos subjetivos. As narrativas de história oral implicam desvios, inexatidões, variações, deformações. Isso tudo faz parte dos efeitos da oralidade que é expressão da memória advinda de encontros no “tempo presente”. De fato, é exatamente a variação que interessa, pois, verbalmente expressa, a memória é sempre seletiva, dinâmica e suscetível. A prática da entrevista em história oral herdou muito da entrevista antropológica, mas, no caso dessa, a participação do entrevistador é mais dominante do que no caso dos oralistas. Os oralistas devotam cuidados interpessoais no estabelecimento do texto. Os sociólogos que se valem das entrevistas, por sua vez, sentem-se mais à vontade para fracionar o uso do discurso.

CC: Como tratar questões de desvios, invenções, alteração da verdade, mentira, silêncio em história oral? Ou seja, existe confiabilidade nas entrevistas?

JCSBM: A exposição dessas variações é o patrimônio maior possibilitado pela história oral. Notar “desvios”, propositais ou não, implica dar passagem para o imaginário e para a vocação utópica das narrativas. Da mesma forma, os silêncios, interrupções, fazem com que a narrativa ganhe sentido em sua significação subjetiva. Além do trabalho de “tradução” do oral para o escrito, que deve incorporar essas situações, advoga-se a qualidade do texto que deve levar em conta o receptor. Com isso critica-se o ipsis litteris, ou a transcrição dita fiel. Há critérios na produção do texto e, sobretudo, para a legitimação, ou autorização dada pelo colaborador. Essa autorização é vital para qualificar a identidade do narrador com sua expressão.

CC: Qual o futuro da história oral?

JCSBM: A história oral conquistou definitivamente seu espaço. Seja na academia, seja no âmbito da história pública, dos meios empresariais ou familiares, há lugar para trabalhos que registram e assim propõem sentido às experiências. Na universidade, reino privilegiado dos documentos escritos, a história oral demorou a se impor. Contudo, a institucionalização do trabalho com entrevistas é um fato irreversível. Por outro lado, benefício decorrente, a história oral se impôs também como elo entre o trabalho acadêmico e a vida fora dos muros escolares. Em direção contrária, também é justo apontar o reconhecimento crescente que os trabalhos comunitários têm feito, valendo-se dos ensinamentos e práticas acadêmicas

* Gianni Carta é editor do site de CartaCapital. É jornalista e cientista político formado pela Universidade da Califórnia e mestre em relações internacionais pela Universidade de Boston. Foi correspondente da CartaCapital na Europa durante 17 anos. Em seus mais de 20 anos no exterior, também foi correspondente da Isto É, Diário do Grande ABC, repórter especial da BBC World Service, da rede de tevê norte-americana CBS e do semanário GQ (Europa). Contribuiu para, entre outros, The Guardian e Radio Five Live. Seu último livro é Às Margens do Sena (com Reali Jr., Ediouro, 2007).

** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.