Colinas de Léogâne, Haiti, 22/3/2012 (IPS/Haiti Grassroots Watch) – Quase a metade dos abrigos de emergência distribuídos pela organização britânica Tearfund nos morros da localidade haitiana de Léogâne estão vazios, seis meses após serem construídos. A associação jornalística Haiti Grassroots Watch (HGW) realizou uma investigação de dois meses nas aldeias de Fonds d’Oies e Cormiers, nessa localidade.
A conclusão é que 34 das 84 famílias que receberam moradias temporárias não moravam nelas, e que 11 famílias conseguiram duas casas de organizações humanitárias diferentes. Se estas 34 casas (construídas por US$ 3 mil cada uma, segundo a Tearfund) estão vazias, ou, pior, alugadas, isto significa que foram desperdiçados pelo menos US$ 102 mil, enquanto dezenas de famílias vizinhas ainda moram em barracas ou choças improvisadas.
“Os abrigos de emergência entregues por aqui não foram distribuídos de maneira justa”, afirmou Rosemie Durandisse. Esta agricultora de 50 anos, seu marido e os seis filhos ocupavam uma casa sólida com quatro cômodos, que ficou destruída pelo terremoto de 12 de janeiro de 2010, cujo epicentro foi a cerca de 25 quilômetros dali. Agora, a família vive amontoada em um casebre de madeira, tela e plástico. “A vida não é nada cor de rosa para mim. Preciso encontrar uma casa porque quando chove a enxurrada torna nossas vidas miseráveis”, acrescentou.
A organização cristã Tearfund (Fundo de Alívio da Aliança Evangélica), que trabalha em cerca de 50 países, chegou a estas localidades da montanha entre Léogâne e Jacmel depois do terremoto. Além de outras obras, construiu 249 “abrigos de transição”. As “casas respeitam as normas” estabelecidas para moradias posteriores ao desastre, informou à HGW a diretora do programa da Tearfund no local, Kristie van de Wetering. “E uma das coisas que fizemos foi buscar dinheiro extra para poder implicar os beneficiários e a comunidade no projeto”, explicou.
As casas de dois ambientes e 18 metros quadrados foram construídas de madeira aglomerada sobre uma base de cimento e com teto de zinco. Cada uma custou US$ 3 mil, segundo a organização. No total, nos últimos dois anos, as organizações humanitárias construíram cerca de 110 mil abrigos de transição nas áreas devastadas pelo terremoto, ao custo total de US$ 500 milhões. A quantidade de famílias sem moradia após o desastre chegou a 300 mil. Para conseguir um abrigo de transição, uma família tinha que provar que possuía terras ou um aluguel de longo prazo. Cerca de dois terços das 200 mil famílias abrigadas depois do terremoto eram inquilinos, o que significa que não estavam aptas para receber essas casas.
No mercado de Tombe Gâteau, ao longo da estrada de Jacmel, duas casas ficam no mesmo terreno. Uma da organização Brac, de Bangladesh, que a construiu de concreto, a alguns passos de uma de madeira, feita pela Tearfund. Todos no bairro dizem que ambas pertencem à mesma pessoa: Cevemoir Charles. No muro da casa da Brac há um cartaz onde se lê “Aluga-se”. Consultado a respeito, Charles explodiu em raiva e partiu rapidamente, resmungado que “estas casas não pertencem a mim, são da minha mulher”.
O caso de Charles não é único. Résilia Pierre, mãe de três filhos, vive com o marido e mais duas pessoas em uma das duas casas que recebeu da Brac. E também busca por um inquilino. “Vivo neste abrigo e o outro está vazio”, admitiu, com se fosse perfeitamente normal. “De vez em quando vou lá limpar”, acrescentou.
O funcionário de ligação local da Tearfund jurou que não há duplicações. “Levamos em conta se alguém já recebeu um abrigo de outra organização não governamental”, disse Booz Serhum. Mas, nas duas seções comunitárias investigadas, a coordenação foi, no mínimo, ineficiente. Não impediu que ocorressem cerca de dez duplicações na mesma região, ou que muitos outros recebessem abrigos sem necessitá-los, já que vivem em outra parte ou os alugam.
Como se explica haver abrigos vazios enquanto famílias inteiras ainda vivem em tendas ou casas danificadas? Os jornalistas concluíram que faltou coordenação, houve falhas no método usado para selecionar os beneficiários e também mentiras e erros. Os funcionários locais foram os primeiros a reconhecer a desastrosa situação.
“As vítimas se queixam de que há pessoas que receberam abrigos sem terem necessidade, enquanto outras necessitadas não receberam”, disse Laurore Joseph Jorés, integrante do Conselho Administrativo da Seção Comunitária de Cormiers (Casec). Innocent Adam, coordenador desse órgão em Fond d’Oies, concordou com seu colega, mas enfatizou que as autoridades locais não podem fazer nada. Contudo, se os funcionários locais não escolheram os beneficiários, quem o fez?
Segundo a Tearfund, os comitês comunitários instalados com a ajuda da entidade após o terremoto tiveram a última palavra, mas os comitês afirmam que foi a organização que decidiu tudo. Segundo Sanon Dumas, integrante do comitê de Fond d’Oies, a organização só foi responsável por garantir que a construção acontecesse corretamente, e depois informar a Tearfund. Porém, admitiu: “se fizemos alguma escolha, foi para ajudar a Tearfund a selecionar da lista os que já haviam se registrado e estavam na base de dados do computador”. A mãe de Dumas recebeu um abrigo de transição, que no começo deste mês ainda estava vazio.
Alguns acreditam que a Tearfund foi fraudada muitas vezes. “O estudo de campo inicial foi feito por gente que em nada conhecia o contexto local”, disse Févry Gérésol, integrante do comitê de Cormiers. “Pessoas receberam um abrigo por métodos nebulosos ou mediante mentiras”, denunciou. Ele próprio tem dois abrigos de transição que recebeu de duas organizações, Tearfund e Cruz Vermelha Suíça.
Por desconhecerem a região, os pesquisadores foram enganados por pessoas que simularam ser donas de casas abandonadas e destruídas. A Tearfund, que também construiu 27 escolas temporárias e uma dezena de poços, e realizou outros programas na região, não nega a possibilidade. E parece que o nepotismo e o favoritismo também tiveram um papel na distribuição de pelo menos alguns dos abrigos.
Jornalistas da HGW observaram que nas seções comunitárias que integraram a mostra, a maioria das famílias que conseguiram abrigos tinha algum tipo de vínculo com membros do comitê. Por exemplo, cerca de dez famílias que vivem perto de Sanon Dumas têm abrigos, enquanto potenciais beneficiários a poucos quilômetros dali ainda vivem em casas danificadas.
Berline Cérival, de Grand Bois, conhece muito bem as vantagens de uma amizade. “Os pesquisadores não me contataram, por isso fui ver” um membro de um comitê. “Ele entrou em contato com um engenheiro da Tearfund para que construísse um abrigo para mim. E aqui estou hoje”, contou a mulher. Envolverde/IPS
Nota
A entrevista com a Tearfund aconteceu antes do trabalho de campo para este artigo. A equipe da HGW tentou muitas vezes fazer uma entrevista posterior, sem sucesso.
* A Haiti Grassroots Watch é uma associação entre a AlterPresse, a Sociedade de Animação e Comunicação Social (Saks), a Rede de Mulheres de Rádios Comunitárias (Refraka), rádios comunitárias e estudantes da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade do Estado. Este informe foi possível graças ao apoio do Fundo para o Jornalismo de Investigação no Haiti.