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Abyei pressiona os dois Sudão

Comemoração quando os líderes da etnia dinka ngok anunciaram que avançariam com o referendo unilateral em Abyei. Foto: Andrew Green/IPS
Comemoração quando os líderes da etnia dinka ngok anunciaram que avançariam com o referendo unilateral em Abyei. Foto: Andrew Green/IPS

 

Juba, Sudão do Sul, 6/11/2013 – O referendo não vinculante do mês passado, sobre o status de Abyei, esmagadoramente a favor da união com o Sudão do Sul, e a comemoração que se seguiu não constituem nenhuma solução imediata para essa cobiçada região. Por outro lado, avizinha-se um potencial conflito entre a etnia local dinka ngok e a tribo nômade misseriya, aliada do governo do Sudão, que também reclama este território de dez mil quilômetros quadrados, rico em petróleo e com vasta área de terra fértil.

Os dinka ngok habitam Abyei, mas também o fazem os misseriyas uma vez ao ano, quando levam seu gado para pastar na região. A temporada de pastoreio em Abyei começa este mês, indica a Avaliação Base da Segurança Humana para o Sudão e Sudão do Sul (HSBA), que se dedica a investigar e disseminar informação para reduzir a violência. Logo os misseriyas entrarão em contato com dezenas de milhares de dinka ngok que voltaram à região para o referendo, um encontro que “apresentará grandes desafios para a Força Provisória de Segurança das Nações Unidas para Abyei”, segundo a HSBA.

O porta-voz do Alto Comitê para o Referendo de Abyei, Luka Biong, reconheceu que a violência é um resultado possível, embora improvável, da votação. Um ataque dos misseriyas poderia “desatar uma guerra pequena ou uma maior se o Sul estiver preparado para lutar”. Mas nenhum dos dois governos está interessado em mais batalhas, indicou à IPS. Em sua opinião, os líderes da comunidade dinka ngok não tinham nenhuma ilusão de que o referendo resolveria de vez a questão de Abyei.

Entretanto, esse não é realmente o ponto. “Há uma possibilidade de que o referendo possa criar uma pressão real”, afirmou Biong. Os governantes terão que “observar as consequências do que temos falado”, acrescentou. E nisso têm sucesso. É difícil para os dois governos, especialmente para Juba, ignorar o movimento dos dinka ngok.

O acordo de paz que pôs fim a décadas de guerra civil sudanesa prometeu à comunidade de Abyei uma consulta popular coincidindo com o referendo de janeiro de 2011 sobre a independência do sul do Sudão. Este foi realizado, e o sul se separou do norte. Mas para Abyei não houve referendo. Em setembro, um painel de especialistas da União Africana (UA) sugeriu que fossem consultados apenas os dinka ngok em outubro deste ano. Porém, a UA retirou seu apoio à proposta quando Cartum foi contra a exclusão dos misseriyas.

Os líderes da etnia dinka ngok seguiram em frente com o referendo, apesar das advertências feitas pela UA de que esse passo poderia ameaçar a paz na região. Em 31 de outubro, funcionários do Alto Comitê do Referendo de Abyei anunciaram os resultados da consulta popular unilateral para determinar o futuro da disputada área. Foi convocada às urnas apenas a comunidade dinka ngok e, tal como se antecipara, a decisão foi praticamente unânime. Mais de 63 mil pessoas votaram a favor da integração com o Sudão do Sul, e apenas 12 votaram para Abyei ser parte do Sudão.

Tão logo o resultado foi divulgado, os chefes de nove reinos dinka ngok assinaram compromissos de se unirem ao Sudão do Sul. A autoridades desse país, que não estão dispostas a complicar sua delicada relação com Cartum, mantiveram silêncio sobre o referendo. Mas Biong espera que o pronunciamento da etnia dinka ngok leve a UA a reiniciar as negociações entre Cartum e Juba. E há evidências que apoiam essa presunção.

Uma missão da UA chegou ontem a Abyei, onde permanecerá por dois dias. Com vistas a essa visita, o grupo solicitou ao Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) apoio à proposta de setembro de 2012, que estabelece que os habitantes de Abyei devem determinar “seu futuro político e se deve assegurar o direito de acesso permanente para as populações migratórias”.

Entretanto, será difícil conseguir que os dois governos se sentem para negociar, embora a relação notoriamente fria esteja melhorando, o que ficou claro em outubro com a visita do presidente do Sudão, Omar al Bashir, a Juba. Os dois países estão se beneficiando da distensão. Quando se separou, o Sudão do Sul, país sem saída para o mar, levou consigo três quartos das reservas de petróleo do Sudão, que, por sua vez, manteve o único oleoduto para exportar o petróleo sul-sudanês.

No início do ano passado, Juba interrompeu sua produção de petróleo em protesto pelas elevadas taxas cobradas por Cartum pelo uso do oleoduto. O problema foi resolvido mais de um ano depois, e a produção foi reiniciada em março. Desde então, o Sudão do Sul recebeu US$ 1,3 bilhão com a venda de petróleo, e pagou US$ 329 milhões ao Sudão, segundo o Ministério de Petróleo.

À luz dessa situação, as duas partes terão cuidado em evitar uma escalada pelo status de Abyei, pontuou à IPS o professor de paz e desenvolvimento rural na Universidade de Juba, Alfred Lokuji. Os governantes dos dois países evitam o assunto. Coincidem em propor uma força policial e uma administração conjuntas para a região, mas não fixam prazos e nem mesmo mencionam o referendo, embora Juba tenha manifestado anteriormente seu apoio à proposta da UA.

O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do Sudão do Sul, Mawien Makol Arik, disse à IPS que seu governo não permitiria que os dinka ngok votassem para alterar as relações com o vizinho do norte, que estavam melhorando. “Os dois presidentes divulgaram um comunicado para acelerar a instauração da administração de Abyei. Nenhum dos dois governos é parte do referendo, por isso não haverá nenhuma alteração”, acrescentou.

Embora Cartum possa evitar o tratamento imediato desse problema, Juba não pode se dar esse luxo. Entre Abyei e o Sudão do Sul há vínculos profundos, e muitos membros da comunidade dinka ngok ocupam altos cargos a partir dos quais exercem pressão sobre o governo. Os rivais políticos do presidente sul-sudanês, Salva Kiir, já disseram que estão preparados para agitar o assunto se o Sudão do Sul decidir manter silêncio em relação a Abyei.

William Rial Liah, secretário-geral do opositor Partido Democrático Unionista, viajou até Abyei nos dias anteriores ao referendo para mostrar seu apoio. “Permitamos ao povo de Abyei tomar esta decisão e o apoiaremos até o final”, disse à IPS. Apesar da possibilidade de o resultado da consulta nunca ser reconhecido, os líderes da etnia dinka ngok podem ter obtido exatamente o que queriam: gerar pressão diplomática e política para conseguir, no fim, o referendo vinculante que lhes fora prometido. Envolverde/IPS