A decisão de transformar a letra cursiva em prática do passado faz parte de um movimento que tenta padronizar, avaliar e tornar os sistemas de ensino dos Estados Unidos mais competitivos internacionalmente. Isto num contexto em que o uso educacional da tecnologia virou uma verdadeira febre no país, enriquecendo desenvolvedores de softwares e impulsionando políticas voltadas à integração dos alunos ao ambiente midiático.
Após a recomendação do fim da letra cursiva pelo Common Core Stated Standards Initiative (Iniciativa para um Padrão Comum de Currículo, em tradução livre), a cidade de Edison, Nova Jersey, anunciou que vai introduzir o tablet como ferramenta pedagógica. Durante o próximo ano letivo, alunos das escolas públicas aprenderão álgebra por meio de um aplicativo criado especificamente para o aparato. A medida visa a medir a eficácia do sistema na sala de aula: metade dos estudantes receberá livros e a outra metade os dispositivos eletrônicos. Ao final, o desempenho dos dois grupos será comparado.
A antropóloga e neurocientista Elvira Souza Lima, que morou nos Estados Unidos e viu seus filhos frequentarem as escolas norte-americanas, acredita que o país justifica pela tecnologia a definição do que deve ser ensinado à criança, partindo do princípio de que já estamos usando o computador prioritariamente. “A escola norte-americana decaiu muito nos últimos 20 anos. Eles ignoram o que seja o desenvolvimento da criança. Não é a questão da escrita em si mesma, mas do desenvolvimento simbólico”, avalia.
Novo padrão
Nesse contexto, o fim da letra cursiva foi recomendado pelo Common Core Stated Standards (CCSS), uma ação conjunta entre Estados norte-americanos formada por docentes, especialistas, pais e administradores escolares. O grupo, que defende a priorização da digitação nas escolas, já abarcou 46 dos 50 Estados norte-americanos. A missão é clara: “com os estudantes norte-americanos preparados para o futuro, nossas comunidades estarão mais bem posicionadas para serem bem-sucedidas na competitiva economia global”.
A busca por padrões educacionais se baseia em princípios como a necessidade de desenvolver e implementar sistemas abrangentes de avaliação para medir o desempenho dos alunos. A CCSS estabeleceu padrões para o ensino de língua inglesa, artes e matemática para alunos dos cinco aos 18 anos. Mas cada Estado tem seu processo de desenvolvimento, adoção e implementação dos padrões educacionais, dado que os Estados Unidos são uma república federativa. Os 46 Estados aderiram por diferentes vias, por meio dos Conselhos de Educação ou pela legislação estadual. O governo federal não tem nenhum envolvimento com a iniciativa.
Indiana
Participante do movimento desde agosto de 2010, o Departamento de Educação do Estado de Indiana distribuiu, em abril último, um memorando para orientar as escolas quanto ao novo padrão, cuja adoção deve estar consolidada até 2014-2015. O documento lembra que o padrão da CCSS não inclui o ensino da letra cursiva e que, por outro lado, deve-se esperar que as crianças alcancem habilidades em digitação.
A transição será rápida: a partir de 2012 as escolas podem abandonar o ensino da letra cursiva para se concentrar em “áreas mais importantes”, como define o Departamento de Educação. Pelo texto do documento pode-se imaginar o fim das cartilhas de alfabetização. “Estamos enviando este memorando para ajudar a alertar os impactados por essa decisão a coordenar os pedidos de recursos para o próximo ano (não peça livros didáticos de cursiva para o ano que vem se você não vai precisar deles)”, recomenda-se.
Outra preocupação é quanto ao sistema de avaliação, visto como uma das “vantagens” do currículo padronizado: a partir de 2014-2015, os alunos das séries correspondentes à faixa etária de oito a 17 anos de diversos Estados serão testados pelos padrões da CCSS e os alunos deverão estar preparados para as provas.
As recomendações da CCSS têm sido adotadas pelos Estados norte-americanos desde 2010. Ainda em 2009, a Time Magazine publicou matéria com o sugestivo título “Luto pela morte da escrita à mão”. No artigo, a revista menciona casos de professores que até a 3ª série estimulam a escrita cursiva, mas declaram que, depois do “rito de passagem”, simplesmente não a estimulam. A revista cita ainda o caso de um garoto de 15 anos que tem uma letra tão feia que é impossível de ser lida. O garoto, que mora em Nova York, tem permissão para levar um computador para a sala de aula, inclusive para as provas. A mãe do aluno tentou resolver o problema com terapia. Não deu certo: ele gosta de escrever mal à mão para poder usar o computador.
Professor e computador
A digitalização do processo educacional nos Estados Unidos preocupa também a carreira docente. A Wireless Generation, empresa que desenvolve softwares para ajudar docentes, por exemplo, é acusada de criar “professores on-line” e tentar substituí-los por computadores. A empresa, que atende a mais de 200 mil professores e três milhões de alunos em todo o país, tem se envolvido em algumas polêmicas. No final de 2010, foi comprada pela News Corp., do magnata Rudolph Murdoch, hoje às voltas com grampos ilegais feitos por um de seus (ex) jornais britânicos, o News of The World.
Ao mesmo tempo em que comprou a Wireless, a News Corp anunciou a contratação de Joel Klein, ex-secretário de Educação de Nova York e um dos idealizadores do projeto de bonificação por desempenho norte-americano. Recentemente, a Wireless fechou um contrato de US$ 27 milhões sem licitação com a Secretaria de Educação de Nova York para desenvolver um software para acompanhar os resultados de avaliação e outros dados de estudantes. A imprensa norte-americana sentiu cheiro de Klein no negócio.
* Publicado originalmente pela revista Educação e retirado do Portal Aprendiz.