Apresentamos aqui o capitulo final da expedição Sem Floresta Não Tem Água. Para acompanhar o vídeo, publicamos uma entrevista exclusiva com Antônio Donato Nobre, um dos principais pesquisadores do Brasil sobre os serviços ambientais prestados pela Amazônia, como a regulação climática e a produção de chuvas
Por Bernardo Câmara, do Greenpeace Brasil –
O planeta Terra está seriamente embriagado. Mas em vez de cachaça, o porre é de desmatamento, fogo, poluição. Se as florestas fazem o papel de fígado, filtrando os gases que jogamos vorazmente na atmosfera, temos más notícias: este órgão vital está perto da cirrose. Um alcoólatra ainda tem jeito, pode fazer um transplante de fígado. “Nós não temos como transplantar a Terra”, alerta o pesquisador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), Antônio Nobre.
Nobre viveu mais de 20 anos na Amazônia e é uma das principais vozes sobre o papel daquela floresta nas chuvas que irrigam boa parte da América do Sul. Com linguagem simples e cheia de analogias, o cientista diz que o ser humano está perturbando o sistema terrestre de uma maneira equivalente ao impacto de meteoros: “Estamos arrebentando o planeta inteiro”. E avisa: zerar o desmatamento já não é suficiente. É preciso replantar as áreas devastadas. Isso se quisermos continuar existindo economicamente. Ou melhor, se quisermos continuar existindo, ponto.
Leia abaixo os melhores trechos da entrevista que nossa reportagem realizou com Nobre em seu escritório em São José dos Campos (SP), onde fica o INPE, e assista aqui o terceiro e derradeiro episódio da Expedição Sem Floresta Não Tem Água, realizada há poucas semanas por alguns dos mais exauridos – e desmatados – mananciais da região Sudeste.
Saiba mais sobre a expedição aqui.
Em linhas gerais, como as florestas favorecem a vida na Terra?
Vênus e Marte, nossos vizinhos, são ambientes extremamente inóspitos. Não têm vida. Um mundo como a Terra é uma improbabilidade estatística. É um mundo absurdamente confortável. A floresta faz o trabalho de regulação atmosférica, do ciclo hidrológico, da qualidade do ar, do funcionamento da interação do sol com a atmosfera, da concentração de CO2 na atmosfera. Se você está numa região desmatada, a superfície é super quente. Se você entra numa floresta, parece que entrou numa sala com ar condicionado. Não é por acaso.
Tem regiões onde esse conforto já não é mais sentido.
Hoje o ser humano está perturbando o sistema planetário de uma maneira equivalente a forças geológicas do passado, como o impacto de um meteoro, de vulcanismos. O principal que nós temos feito é a destruição dos ecossistemas. Os ecossistemas são órgãos que nem o fígado, o coração. Há uma assembleia de organismos em cada ecossistema, que funcionam como órgãos do sistema planetário. A ciência está descobrindo inexoravelmente que as florestas são fundamentais na regulação fina do clima na Terra. E também numa coisa chamada resiliência.
Como assim?
Quando alguém compra um carro, ele já sai da concessionária com seguro. A chance de sofrer um sinistro é muito baixa. Mas as pessoas não aceitam o risco: compram paz de espírito. Em relação ao sistema terrestre, quem nos dá o seguro são os organismos nos ecossistemas naturais.
Quando se fala em proteção da floresta, está se falando de proteção da água?
Totalmente. 100%.
Mas na crise hídrica de São Paulo pouco se fala de floresta.
Começou a faltar água aqui e as pessoas disseram: “Bota uma usina de dessalinização”. Isso interessa a empreiteiras, não à sociedade. Continuamente, em todos os oceanos da Terra, trilhões de quilômetros cúbicos de água doce são produzidos de graça pelo sol. Mas essa umidade da evaporação fica sobre o oceano. Para ela se deslocar para o continente, precisa ter algo puxando. Só tem uma coisa capaz de fazer isso: chama-se árvore. As árvores produzem uma evaporação no continente, que produz condensação. Abaixa a pressão e puxa a umidade do oceano para dentro do continente. Isso é chamado de bomba biótica de umidade.
É assim que a Amazônia atua no regime de chuvas no Brasil?
No Brasil e na América do Sul. O sol é gratuito. As árvores são gratuitas. Juntos, eles produzem um ciclo hidrológico que viabiliza a existência humana. E a economia. O quadrilátero que vai de Cuiabá a Buenos Aires e de São Paulo aos Andes produz 70% do PIB da América do Sul. Toda a economia depende da água doce. Hoje estão plantando floresta inclusive nos desertos. E a gente já tem um sistema funcionando aqui. Não precisa fazer usina de dessalinização, nem transposição de rio da Amazônia até São Paulo, como alguém sugeriu. Essa transposição já é feita gratuitamente, via atmosfera.
Mas para funcionar, esse sistema depende de um equilíbrio natural, que parece estar abalado.
Eventos extremos já ocorreram muitas vezes na história do planeta. Mas quando há sistemas biológicos em pleno funcionamento, o impacto é extremamente atenuado. Por exemplo, a Amazônia sofreu uma paulada [com a seca] em 2005 e em 2010. E ela está lá, se recuperando. Só que esse sistema tem capacidade de ir até um determinado ponto. Depois desse ponto, ele não aguenta. Na medicina chamam de falência múltipla de órgãos: um fator desencadeia outro, que desencadeia outro e o sistema entra em colapso.
A gente está a que distância desse colapso?
A gente já passou do ponto de não-retorno. Há 25 anos a ciência vem falando que a emissão de gases de efeito estufa e a destruição das florestas iam produzir redução de chuvas, aumentar a duração da seca. E isso está sendo constatado. Se você assiste o noticiário, você vai ver o que a ciência vinha falando. E a ciência foi ignorada. O ser humano foi formado numa cultura que não reage se não tiver um desastre. Em 2009 me perguntaram quanto tempo nós tínhamos. Eu falei: “De cinco a seis anos”. Quando me perguntam agora, digo: “Nenhum. Acabou o tempo”.
O que fazer, então?
Nunca tivemos uma situação da gravidade do momento atual. Ela requer um esforço de guerra da humanidade. A maior parte dos meus colegas da ciência do clima não acredita mais que tem volta. O clima da Terra é um gigantesco transatlântico se deslocando. Quando o capitão decide mudar de curso, tem que pensar com antecedência, porque tem toda a inércia daquela massa. Demora quilômetros para ele conseguir mudar o curso do negócio. Se tem um iceberg ali na frente, não dá tempo: vai chocar com o iceberg.
No Brasil o que seria esse esforço de guerra?
Seria o desmatamento zero para anteontem. É inconcebível que você dê mais tempo para zerar o desmatamento. Segundo ponto: tem que acabar com fogo, fumaça e fuligem. Isso destrói o mecanismo de chuvas da atmosfera. Durante a estação úmida, a fumaça e a fuligem produzem nuvens destrutivas: têm gelo dentro, têm relâmpago, têm tornados. Na época seca, elas produzem nuvens que não chovem. Com a fumaça e a fuligem arrebentando o sistema de chuvas, seca total. Aí o fogo entra na floresta e detona.
Acabar com o desmatamento não é radical?
Imagina uma pessoa em estado terminal na UTI. Faltam dois dias para morrer e ela quer fumar. Não dá para negociar: a junta médica proíbe. Se você tem alguma chance de sair da UTI, você não pode pensar em chegar perto do cigarro. Por isso acabar com o desmatamento e com o fogo, porque destroem o que ainda funciona. E tem uma terceira coisa: só isso não é mais suficiente. Precisa replantar o que foi destruído.
A gente tem algo a nosso favor?
A natureza tem um mecanismo sofisticado de cicatrização, igual ao da pele. As sementes são pequenos pacotinhos de tecnologia da vida, com milhões de anos de evolução. Para construir uma usina de dessalinização, você precisa fazer cada máquina, cada peça, cada motor. Na natureza, você joga uma sementinha no solo e sai uma estrutura fantástica que tem efeito sobre a dessalinização dos oceanos, sobre a produção de água doce no continente etc..
Qual o papel das florestas nas margens dos rios?
Os organismos no ecossistema são tão evoluídos que, ao cuidar de seu interesse de sobrevivência, geram benefícios locais, regionais e globais. No nível global, é como um ar condicionado: a fotossíntese tira o gás carbônico da atmosfera e libera o oxigênio. Quando todas as plantas fazem isso, abaixa a concentração de gás, diminui o efeito estufa e esfria o planeta. A respiração, que é o processo reverso, pega o oxigênio e libera o gás carbônico: começa a acumular gás na atmosfera e esquenta o planeta. Um termostato do ar condicionado funciona de forma oscilante também. Se a sala esquenta, o ar esfria. Chega até um ponto e desliga. Aí esquenta de novo e assim vai. É assim que as florestas regulam o clima da Terra.
Este é o efeito global.
Sim. Aí tem o efeito regional. Com a floresta amazônica, a gente tem regularizado o ciclo hidrológico, tem regularidade no ciclo das chuvas, tem redução dos impactos de eventos extremos na atmosfera – como a violência dos ventos – etc.. A gente também tinha esses serviços da Mata Atlântica, até ela ser destruída. Os rios voadores [correntes de ar que carregam a umidade gerada na floresta, fazendo chover em outras regiões do continente] são um exemplo forte dos efeitos regionais.
E os efeitos locais?
As árvores atuam na regularização do ciclo hidrológico em termos de bacia hidrográfica de primeira ordem – que são aqueles arroios dos igarapés, os riachinhos onde saem as fontes de água, os mananciais. No chão da floresta, tem uma camada onde ficam os detritos, as folhas que caem, o cocô do macaco. Se estiver chovendo, você fizer um furo no meio do cocô, botar um tubo e furar 10 centímetros no solo, a água passa pelo cocô, pelas folhas e, se for analisar, é água puríssima. Pode beber. Um punhado de folhas no chão da floresta tem mais organismos do que a população da China. A água passa pelo cocô, que tem coliformes fecais, e entra num complexo sistema de tratamento. É essa água que vai para os rios. O efeito local de uma vegetação na cabeceira de um rio é muito valiosa. E estou falando só de um aspecto. Tratar água vindo de uma bacia desmatada custa até 100 vezes mais do que tratar água saindo de uma floresta íntegra.
Mas grande parte das margens desses rios já tem ocupação humana.
Em Nova York estão pagando para quem está nas áreas de cabeceira para manter a floresta. Na cidade de Extrema, em Minas Gerais, também. Estamos pagando por serviços ambientais da floresta. É um investimento, não é custo. Imagina a Billings, em São Paulo, uma represa que quase não dá para usar para consumo humano, de tão caro que é limpar o cocô que tem lá. Se tivesse isso fornecido pela floresta, teria outra qualidade de água.
Mas para ter água de qualidade, precisa ter água. E em São Paulo está faltando. Claro, com esse desmatamento. Se você tira a floresta, acaba a chuva. Essa sabedoria ancestral é cientificamente válida. Foi demonstrada, publicada, passou por testes. As previsões feitas com base nesse conhecimento da ciência sobre o papel das florestas nos níveis global, regional e local estão acontecendo.
Estes estudos são recentes?
Desde os anos 1990 se fez previsões de que o desmatamento ia diminuir chuvas, aumentar a estação seca.
A crise hídrica de São Paulo pode se tornar comum?
Esse é o temor. Uma vez que você precisa de um recurso que chega de uma região que depende da cobertura vegetal que tem lá e você está destruindo essa cobertura vegetal, o que se pode esperar? Estão exigindo dos cientistas 100% de certeza do que vai acontecer. Assiste o noticiário: já está acontecendo.
E muita gente continua ignorando…
Nosso comportamento atual é como o de um alcoólatra: a cada porre que a pessoa toma, o fígado se regenera, mas fica uma cicatriz. Quando o órgão está tomado por cicatrizes, aí é cruz de madeira no cemitério. Ou transplante de fígado. Estamos fazendo exatamente isso com o sistema climático. E não temos como transplantar a Terra. O CO2 não acumulava tanto na atmosfera porque o oceano estava tirando, as florestas estavam tirando. Aí a gente mete a motosserra, aniquila os órgãos de regulação climática e continua a colocar tóxicos nos ares, nos mares, nos rios, na terra.
A ciência tem feito um discurso bastante enfático sobre esses riscos.
Nós temos um desafio que jamais enfrentamos. É difícil para o cérebro captar isso. No entanto, é a realidade. Se você não quer acreditar, você vai ver na notícia ou vai abrir sua porta e vai ter enchente, seca ou ventos, como aconteceu agora em Santa Catarina. Acabou o conforto. A gente está vivendo num ambiente extremo.
A sociedade pode fazer algo?
Ela tem que sair da posição passiva. No dia em que a sociedade passar a ser ativa, essa fração minúscula de pessoas que desmatam vai ter que ser limitada. Ela e toda essa cultura da escravidão, da pata de boi, de ocupar, de desmatar. Temos que nos unir em um esforço de guerra contra o desmatamento, que é uma violência contra a sociedade.
Você diz que a Amazônia tem sido o backup da Mata Atlântica. Como assim?
A Europa acabou com as florestas que tinha. Não teve os efeitos dessa destruição num primeiro momento porque ainda tinha as florestas da Europa central e da Rússia como backup. Quando a gente fala que a Amazônia protegeu o sudeste de extremos, a gente tem essa cópia do que aconteceu lá. A Amazônia nos garante. Mas a gente já vê sinais de falência, pois ela está sendo destruída implacavelmente. Na Ilha de Páscoa, desmataram até a última árvore. Aí não tinha mais madeira para fazer barco para pescar. Aí acabou. Hoje não é mais a Ilha de Páscoa. É a ilha chamada Terra. Estamos arrebentando o planeta inteiro. E não tem barco para a gente sair daqui nem outro planeta para a gente ir. (Greenpeace Brasil/ Envolverde)
* Publicado originalmente no site Greenpeace Brasil.